A única luz que se acendia, às duas da manhã, era a da geladeira. Sorrateiramente, sem o menor barulho e sem luz, Cordélia corria na ponta dos pés até a cozinha. Na pontinha dos pés que era pra não fazer barulho…e correndo desesperada porque no caminho escuro do quarto pra cozinha aparecia todo tipo de assombração. Como se o apartamento escuro tivesse fantasmas escondidos tão ou até mais medonhos que aquela sede louca que ataca sempre no meio da noite. São poucos os que conseguem levantar pra enfrentá-la e a menina era um deles. Não muito corajosa, ainda assim despertava parcialmente para correr e abrir a geladeira, que expulsava violenta aquela luz forte que iluminava toda a sua face alva.
As garrafas estavam todas cheias de água. Pegou de vez a menorzinha e encheu a caneca cor-de-rosa com um ursinho de cores já apagadas. Sem pensar em nada, ávida por aquele líquido insípido, bebeu-o voraz. Aparentemente saciada, passou a fitar a caneca e notou, mais atenciosa, que o desejo infreável de matar sua sede fez com que não agarrasse a tal pela asa e, sim, pelo corpo, como os artistas de TV agarram selvagem o braço da mocinha, num ímpeto avassalador. Desta vez, ao enchê-la pela segunda vez, segurava-a pela asa, como se tocasse suave, ainda que segura, a mão de alguém…tão menos ansiosa e, claro, mais elegante.
A água descia pela garganta mais gelada e vagarosamente. Sentia toda a sua boa molhada, invadida por uma sensação refrescante. Antes de tomar coragem para levantar-se da cama, tentara se contentar somente com a saliva, mas esta parecia insuficiente, além de quente. Ao pensar nos litros de água tão convidativos e alcançáveis a alguns poucos metros, não hesitou: levantou num só pulo. E ali estava.
Enfrentara os monstros do corredor e agora tinha sua recompensa: era visível a abundância do líquido no refrigerador. Podia sentir-se satisfeitíssima pelo resto do sono com as duas canecas cheias que havia tomado. Cordélia, entretanto, não voltaria tão cedo para seus lençóis.
Repentino, um calor começou a subir-lhe o corpo. Vinha não se sabe de onde, a madrugada era fresca e sua camisola era de um tecido leve. Sentiu-se agitada, abriu o armário e tateou, no escuro das luzes apagadas, um copo ainda maior. Encheu-o até o topo, agora usando-se da jarra de alumínio, pois a menorzinha, que havia pego primeiro, já estava vazia.
Tomou cada gole barulhento e abanava-se com as mãos, ao mesmo tempo que tentava suspender os cabelos.
Aquele agitar de garrafas fez Dona Nina despertar. Ela sempre teve o sono leve e o quarto de empregada que ocupava tinha a porta dando pra dentro da cozinha. Estranhou a demora de alguém ali perto e foi levantando seus sessenta anos bem devagar.
Enquanto Dona Nina procurava o chambre, Cordélia incendiava. Os copos de água já não lhe refrescavam e, então, destampou uma das garrafas e jogou um pouco de água nos cabelos. Passou a refrescar todo o corpo, com as mãos molhadas, até esvaziar por completo todo o estoque da geladeira.
Esqueceu dos que dormiam e, enfim, ligou as luzes da cozinha. Correu e abriu a torneira da pia. O barulho da água escorrendo forte acordou a mãe e a irmã menor, que resistiam, rolando no colchão.
Dona Nina abriu a porta e, ainda sonolenta, pôde ver Cordélia, inteiramente despida, espirrando a água da torneira, molhando-se e encharcando todo o piso. Sem atentar para a figura atônita da velha senhora, que, chocada, permaneceu quase estática, dirigiu-se, não mais correndo, ao banheiro, acendendo todas as luzes que encontrava e exterminando impiedosa todas as assombrações que, até então, temia.
Ligou o chuveiro e pôs-se inteira debaixo dele. Em êxtase, ficou sentindo a água penetrar-lhe viva por todos os poros. Singularmente limpa, refrescada. Mas os roídos fizeram com que a mãe levantasse.
Enrolada numa toalha, com o corpo ainda úmido, viu, da janela do quarto, a enorme piscina lá embaixo. Muito mais água, onde ela realmente poderia mergulhar. Lançou-se nua, do 12o andar, numa expressão que ficou congelada no céu, obcecada pela total purificação, enquanto Dona Nina enxugava paciente o líquido da salvação pelo assoalho da cozinha.