Histórias Que a Vida Conta – De Calor e de Cobertor

Achamos o pedido um pouco estranho. Ela veio de longe naquele dia acompanhando a filha que tomava conta da nossa casa. Queria, porque queria, um velho cobertor, usado para passar roupa. Tudo era estranho no pedido: a insistência, o olhar encabulado da filha, a cobiça por uma coisa sem valor ou utilidade. Mas no seu olhar havia uma súplica tão ardente que prometemos arranjar um outro cobertor, em melhor estado. Aquele já não servia para agasalhar.
No seu olhar havia o encanto da cor azul. Na pele queimada e enrugada das duas caiçaras a cor dos olhos sobressaia como jóia de turquesa, herança deixada pelos franceses na terra que o sol beija e onde as águas dançam. No olhar da filha podia-se perceber o acomodamento, a submissão, mas o olhar da mais velha transmitia um calor, uma seiva de vida tão forte que era difícil negar alguma coisa. Na cidade grande não nos esquecemos dela e providenciamos um cobertor para esquentá-la.
O fim de semana chegou e com ele a volta para a casa na cidade praiana. Naquele tempo a estrada era um percurso demorado, com tantos desvios que não era possível prever a hora da chegada. No carro, o cobertor sem muita pressa para chegar pois fazia um calor danado! Para nossa surpresa mãe e filha estavam esperando. Os olhos estavam mais azuis de tanta ansiedade! A mais velha estava tão aflita que com seus passos trôpegos mais atrapalhou do que ajudou a tirar as coisa do carro. Sua atitude continuava a nos causar estranheza. Até que por fim o cobertor apareceu. Ela o pegou com sofreguidão, mediu em toda sua extensão, virou em sentido contrário e num tom de fúria e desaponto foi dizendo: – Mas esse não serve…Estranhamos a reclamação pois a sabíamos viúva, muito pobre e o cobertor era novo.
Cansados, já íamos perder a paciência quando a filha puxando a mãe pelo braço agarrou o cobertor saindo para a rua . Ficamos escutando os palavrões da velha e ainda a vimos, sob a luz da lua, jogar o cobertor no chão com muita raiva. A filha voltou, pegou o pacote e as duas sumiram na curva do caminho. Estranho, muito estranho, pensei, aqui tem coisa!
No dia seguinte saí para descobrir o que estava acontecendo, o que estava escondido. Pergunta daqui, pergunta dali, descobri: Tinham ido morar antes do rio da Barra Seca, num barraco que conseguiram construir numa antiga posse da família. Dinheiro pouco, barraco pequeno, com o espaço espremido para abrigar toda a família composta da filha, do genro, do neto que tinha saído da “saúde mental”, da mulher e dos filhos desse último. A velha geniosa e teimosa dormia do lado de fora do barraco debaixo de um telhado improvisado e nem as súplicas da filha a faziam entrar. É que todas as noites o mais amável dos mendigos da cidade ia juntar-se a ela.
O cobertor precisava ser bastante grande para dois!