A linhagem da cobra grande

Ela era uma cobra grande, explico melhor: Cobra Grande era ela ­ a própria, enorme, cheia de manchas, com pedaços de pele velha caindo enquanto ela se mexia deixando um rastro de mau cheiro e vibrações pelo ar. Pois então, esta cobra grande, que acho já ficou bem claro que era grande mesmo, se arrastava pela mata fechada quebrando árvores, soterrando arbustos e esmagando galhos, procurando algo para comer, quando…
A súbita parada fez com que a parte de trás, que ainda não tinha recebido a ordem de parar, se sacolejasse e criando uma onda de ar, que assobiando passou zunindo pela parte da frente.
A gigantesca língua partida começou a lamber o rosto, os olhos e ao redor da bocarra de onde escorria uma baba fedorenta, enquanto a cobra lançava seu olhar hipnótico para um lagarto, que, assustado pela danada, tinha ficado petrificado.
– Sssshhhh! Assobiou a cobra, tentando encantar o lagarto.
– Venha maisch para pertossshh, sssccchegue maissss!
O pequeno lagarto, balançando-se no embalo da música, começou a andar para perto da ponta do galho onde estava. O galho, entortou pelo peso, estalou e partiu, lançando o bichinho árvore abaixo.
A cobra, preocupada apenas em hipnotizar, teve sua concentração quebrada ao mesmo tempo em que o lagarto quicava num chão cheio de folhas mortas. O lagarto, já fora da hipnose, se deu conta que estava perdido, frito, morto!
Bem, quem não tem nada a perder, cria uma coragem não se sabe de onde e começa a fazer coisas malucas. Foi o que aconteceu:
– Ei prima! Ei, aqui embaixo, olha pra cá, prima!- Gritou o lagarto.
– Primasss??? – Respondeu a cobra, embatucada com o papo furado.
– Prima, claro, somos parentes, ou você acha que só porque eu tenho umas perninhas não sou uma cobra como você? Sou parente e com muito orgulho, aliás estava mesmo caçando por aqui, procurando algo que nããão seja PARENTE para comer.
– Parentesss??
– É, somos uma grande família, imagine só, tente imaginar meu corpo sem as pernas, conseguiu? Há há, entendeu, sou uma cobra também! É lóóógico que, eu sendo uma cobra sou seu parente, algo assim como um irmão perdido, sacou? Cobra? Eu?
– Sssaquei! E daí? – Respondeu a cobra já sem paciência.
– Bem, cobras somos, estamos com fome, vamos juntos procurar algo que nãããão seja parente, para o almoço. Umas folhinhas, frutas, sei lá!
A cobra não entendendo nada e meio abobada pelo esforço de pensar, pediu maiores explicações.
– Fácil, – respondeu o lagartinho, encolhendo as pernas, – veja só: eu sou uma cobra igualzinho à senhora Dona prima, me balanço, tenho uma língua comprida e estou em fase de crescimento. Aposto como a Primona não se lembra de quando era apenas uma lombriguinha… aposto de novo que suas pernas caíram há muito tempo atrás.
– Atrásss! – Respondeu como um eco a grandona já de saco cheio.
Vendo que a cobra não estava convencida ainda, o lagarto apelou e lançando mão do seu último recurso sacudiu com toda força o rabo, que se separou de seu corpo sacolejando como se fosse uma minúscula cobra.
– Nasceu! Eu estava grávido e não sabia! Que lindo, é a cara do pai! Vem cá doçura, vem… – falava carinhosamente o lagarto para seu rabo que, separado de seu corpo, pulava adoidado.
A cobra, com seu cérebro pequenino, entortou a cabeça e se tivesse mãos a teria coçado. Era informação nova demais para ela. Seu corpanzil se enrolou cuidando para que nada acontecesse com o lagarto e seu “bebê”. A horrenda cabeça se curvou e chegando perto do chão começou a balançar seguindo uma música murmurada.
– Ssssabe, eu nunca tive mãe!, bem, ter eu tive, eu nunca conhessssi. O que eu ssssei de criançasch, aprendi comendo mãe e filhosss depoissss de achisstir conversass e cantigasch. Ssssou muito infelixzch,- choramingou a cobra – Vivo apenasch para comer, não tenho amigosss!
– Não tinha!- Declarou o “primo”, – agora você tem nós dois! Eu e o “júnior” somos seus parentes, da mesma forma que um monte de outros por aí! Falta só procurar.
– Mas, com a sua licença prima, temos que ir.- Falou o lagarto pegando o “filho” no colo com as patas da frente e correndo desajeitado sobre as de trás; deixando a cobra balançando a enorme ponta do rabo e fazendo uma carinha triste.
Lá de longe, e em segurança, o Lagarto começou a gritar:
– Ô Prima, deixe por aí seu endereço que vou te convidar para o batizado do Júnior, você tem que ir, você foi a primeira a ver o caçula nascer, vou te chamar para ser a madrinha,… mas, enquanto isso, preste muita atenção no que você for comer! Não interessa quantas patas o bicho tenha, muito menos se a língua for curta, se tiver penas, se voar, se correr, se pular. Tome cuidado pois você poderá estar comendo um parente, um primo, um avô, ou até mesmo uma irmã perdida, ou sei lá a sua MÃE desaparecida!!!
Abra o olho! Não seja má, afinal agora você é responsável pelo meu filho! A Madrinha!!!
Olha o exemplo!!!
Falou e saiu correndo deixando o Júnior, que já não se mexia, embaixo de uma folha.
E a Cobra, que sei que já falei, era uma Cobra Grande, muito grande, foi ficando por ali, definhando, encolhendo, diminuindo, até… Puf ! ­ desaparecer. Tudo por medo de, com fome, comer um parente.
E este foi o fim da primeira e única cobra que virou vegetariana, sobre a qual tenho notícia.
E, também, acho que é por isso que nunca mais apareceu uma cobra tão grande como aquela Cobra Grande; que todos já sabem e estão carecas de ouvir dizer, era uma cobra muito grande, tão grande que fica difícil acabar de falar nela…