O Pombo

Abotoou a saia. No relógio da sala era meio-dia, mas ela estava no quarto e pensou: ainda é cedo. Depois a dúvida, seios no ar, sobre qual blusa. Na segunda vestira a vermelha. Ou fora a azul com listras brancas finas? Decidiu-se pela branca, combinava com a saia, além de mais fácil de pegar. O rosto seria seu rosto descarnado, ossos angulosos, ligeiramente pálido com que vinha enfrentando dragões no castelo. Começou então a rir (não havia quem a censurasse), porque dragões no castelo lhe dava um toque romântico que já não sabia consigo. Por isso, vestida, cruzando a sala, resmungou: sua louca.
Encaminhava-se para a garagem quando o telefone – e se fosse? – tocou:
– Não, não é, sua tonta – disse ao sentar-se no sofá.
Embora pudesse, afinal tinham prometido continuar amigos, relaxar tensões ao se cruzarem, ainda sabendo que pouco se cruzariam depois.
– Alô.
Era fatal que, sendo, ficasse fútil. Queria mostrar-se dona da situação, cruzar as pernas maliciosamente, passar a língua nos lábios, deixar a mão subir até o galho da plantinha que pendia da gaiola pendurada no teto.
– É ela, sim.
Sim, era ele. Reconhecia a voz que tinha ao telefone. Alô, aqui quem fala é. Ou então: desculpe, foi engano.
– Oi, tudo bem?
Sentiu que arriscara muito. Vai-ver estava muitíssimo bem. Pois é, com a Eliane, cê lembra da Eliane?
Dito, esperasse pelo pior.
– Por que mais ou menos?
Errara. Sentiu-se melhor. Também era impossível estar com a Eliane, tinha muitas espinhas pela cara, falava alto. E ele detestava quem alterava a voz para falar de coisas que não pediam um megafone.
– Eu?
O que fazer? O pombo no peito se debatendo. Muito? Pouco? Ligeiramente feliz. O Alfredo, lembra do Alfredo, teu melhor amigo? Pois é.
Muito frívolo. Concluiria que provocava.
Chutou:
– Ah, vou indo.
Pensou em acrescentar: da maneira como me deixou. Frase rancorosa, evitou. Queria mostrar-se simples, da maneira como ia sair para a rua, sem maquiagem, apenas ela ao telefone, falando com o homem que acreditava não amar mais.
– Qual? Não, não assisti.
Há meses não ia ao cinema. A última ainda estavam juntos. Nem queria lembrar. A discussão feia na saída, ele prometendo como sempre desaparecer. Chorara – lembrou, sabendo que exagerava – a noite inteira, dormindo finalmente de sapato e abraçada a almofada em forma de coração.
– Pode ser. Vai depender do dia. Posso ter marcado alguma coisa.
Por que mentia? Compromisso algum. Fosse que dia fosse, portanto, tinha vaga. Tempo, corrigiu-se, vaga lhe emprestava um jeito de escritório de construção civil, a placa na porta.
– E como fazemos?
Ficou de ligar na véspera. Tudo bem, disse sem saber o que acrescentar, enquanto do outro lado ele parecia na mesma situação.
Pegou o martelo, quebrou a barra de gelo ao meio:
– Então tudo bem. Ficamos assim. Tchau.
A dúvida: não agira certo. Ou talvez tivesse, precisava mesmo mostrar que não sentia falta.
O pombo no peito baixou as asas e ela precisava ir ao supermercado.

**
Ligou no sábado. Acabara de tirar o coração da geladeira. Gostava muito, passado na manteiga. Reinaldo não suportava e foram dois anos sem coração. Agora dava-se ao luxo.
– Alô.
A música do outro lado. Mas tão baixo o som, que a letra não compreendia.
– Nada de importante. Pegando comida na geladeira.
Estranhou o interesse. Juntos, não ligava para o que ela fazia. Sobretudo se fosse na cozinha. Quantas vezes teve de abrir mão das unhas bem pintadas, se submeter ao cabelo sem vida por causa da gordura da frigideira. Agora aquele o que está fazendo.
Continuava sem empregada. Rixa atávica que herdara sem maiores contestações. A mãe, por exemplo, dizia: não sei por que gastar dinheiro com empregadas, elas não sabem mesmo fazer nada.
Pelo ritmo, só podia ser. Quis perguntar:
– Deu agora pra ouvir bolero?
Não perguntou. Reinaldo falou qualquer coisa como você precisa se libertar de sua mãe. Envolvida pelo bolero, pelo interesse dele por bolero, não entendeu.
Falou:
– Sente prazer com isso?
Pensou que ela lhe respondia, esclareceu:
– Prazer algum. Só acho que já era hora de cortar o cordão umbilical.
Marluce sem compreender. O que tinha a ver bolero com cordão umbilical? Por via das dúvidas, mudou de assunto.
– E o cinema?
Teria sido melhor esperar, pensou. Não queria parecer atirada. Prendeu a respiração pela resposta.
O vento tocou a folha da plantinha que ficou balançando com a gaiola. Marluce colocou o telefone de volta e fez esforço para não chorar. Não por ele ter dito que seria um duplo engano tentar qualquer coisa outra vez, mas por ter assanhado o pombo, como nunca agora esvoaçando no peito.