Labirintos

“…até que um dia, por astúcia ou acaso, depois de quase todos os enganos, ele descobriu a porta do Labirinto.
…Nada de ir tateando os muros como um cego
Nada de muros.
Seus passos tinham – enfim! – a liberdade
de traçar seus próprios labirintos.”
(Mário Quintana)
I.
Dédalo era um homem cumpridor. Desde muito cedo trabalhara incansavelmente e se orgulhava disso. A carteira assinada mostrava um garoto de cabelo escovinha, olhos indagadores e inquietos.
O fato de ter um nome estranho era atribuído ao pai, sujeito miúdo e determinado que um dia, quando a mãe de Dédalo estava ainda grávida, tinha ouvido uma bonita história do patrão. Nem contara para ele, é verdade, mas ali, jardineiro entre folhagens, ouvira o doutor falando em Creta, em Minos, no Architeto.
Gostara do nome, dito assim numa manhã de sol, as margaridas explodindo amarelos e brancos no jardim…
A mão suja do homem se limpara na calça de brim cáqui, bem na altura dos joelhos, essa inclinação natural de homem ainda novo, mas maltratado pela vida. Fora anotar o nome que mais tarde daria ao filho.
E, ao nascer a criança, correu ao cartório: Dédalo? O escrivão pousara lentamente os óculos sobre o balcão, numa espécie de susto consternado, estranhara aquele disparate, mas, como já tivesse ouvido falar sobre o Minotauro, escreveu no livro de registros assim: Dédalo Maurício Pereira da Silva.
Estava selado o destino: o filho saltara no mundo também numa manhã de sol.
Pura ousadia para quem pobre é. Contam os parentes antigos que , ao sair à luz, chorara um choro longo e sem tamanho, triste.
II.
Dédalo era um homem cumpridor, já disse. Mas ressalto. Ainda conservava a boca determinada, no cabelo tinham nascido uns brancos fios, o pai e a mãe mortos há anos e os olhos, indagadores e inquietos antes, tinham perdido o brilho de quem indaga ou devassa. Neles, mais nenhuma ambição. Envelhecera.
Sofrera muito a vida inteira, é verdade, mas a vida tinha sido generosa com ele: dera-lhe uma família, dois meninos , agora adolescentes, uma mulher meio bovina, de mediana inteligência, boa casa, bom salário, respeitabilidade na empresa onde trabalhava há tantos anos, alguns amigos, um bom carro. Nada desperdiçara. As paredes da casa eram nuas, os móveis de pouca qualidade. Nunca aplicara um tostão sequer nessas bobagens.
Dédalo não era lá de grandes descobertas interiores.
Achava que tinha tudo, tudo o que precisava. Nunca questionara afetos intensos. Recebia da mulher uma atenção medida, pouca.
Atenção de ingratos?
Mas achava normal tudo isso: era assim sem parâmetros, ele.
Destino? Se algum lhe traçavam as fiandeiras – que ele não conhecia por pura ignorância – era o de envelhecer sem sustos, cavoucando o jardim ou levando a mulher ao dentista, às compras, à missa, ao médico. Tomar um uísque, ler a página de esportes, ver o jogo na tevê, aos domingos.
Mais não era. Os amigos, de mediana inteligência, discutiam futebol, pescavam nos fins de semana, reuniam as mulheres enquanto enchiam a cara, vazios feito sacos de estopa, personagens sem interioridade, destino traçado, sonsos de tudo. Banais.
Mas Dédalo também era como eles, um homem pequeno e atarracado, os olhos quase sem brilho, a vontade quase se apagando, uma sede de nada, morria sem saber o motivo de seus dias sobre a Terra. Apenas era.
Foi quando apareceu a moça da biblioteca.
Assim, por quase acaso, não fosse a curiosidade de Dédalo.
Mas o resto eu conto…
III
Um dia Dédalo ficara curioso: uma mulher que conhecera numa festa da empresa e com quem por acaso conversara, é preciso dizer, fora apresentada a ele. Uma mulher delicada e suave, de pele tão clara e um nariz afilado, os cabelos louros e uns olhos verdes inquietos, brilhantes. Nada nela chamava a atenção dele.
Mas ficara curioso porque, ao ser pronunciado seu nome na apresentação, ela sorrira com pontiagudos dentes e dissera:
-Dédalo? Que nome lindo, esse, senhor arquiteto!
Dédalo se desculpara, constrangido:
-Não, eu não sou arquiteto. Eu sou um gerente de projetos…
Ela sorrira outra vez, mostrando os dentes cintilantes , e disse, com paciência irritada, quase sibilante:
-Dédalo é nome mitológico, muito significativo, era a isso que eu me referia, senhor gerente de projetos… E lançara para ele um olhar com que se olha o abismo: que falta de profundidade…
Depois do trabalho, no dia seguinte, entrou na Biblioteca do centro da cidade. Tímido – a ignorância ainda ardendo no cérebro, o desprezo que sentira por si mesmo – ou fora na mulher? Senhor gerente de projetos… – , marca de pequenez absoluta ; chegou-se ao balcão:
Queria um livro sobre mitologia grega.
-Empréstimo? Qual o número de sua ficha, por favor?
-Queria apenas dar uma olhada. Pode me ajudar? Estou procurando o mito de Dédalo…
A moça sorriu quando, mais tarde, fora preencher a ficha: Dédalo Maurício Pereira da Silva, disse solenemente.
Dédalo envergonhado, o nome, na biblioteca vazia, soava como coisa estranha a ele, exterior, solene demais.
E levou o livro.
Na semana seguinte, fim da tarde, apoiou o cotovelo no balcão ( ainda nem descobrira o quanto era feio o gesto):
-Olá. Vim devolver o livro, mas preciso de um xerox da página, pode ser?
Aquele “pode ser?” era outra tipicidade do grosseiro e vulgar que nele habitavam.
Ela sorriu, e o cumprimentou alegremente:
– Senhor Dédalo, como vai? Já construiu para Ícaro as asas?
Ele riu, encabulado: não chegara até aí na história, tivera uma semana muito ocupada.
Pois então vou contar-lhe um segredo: meu nome é Ariane. Também tenho um nome ligado à mitologia grega e… de qualquer modo, ao seu.
Ele sorria pasmado, quase bovinamente quanto sua própria mulher diante do lançamento de um novo produto para passar roupa:
-Ah, é?
Mais tarde, envergonhado, sozinho consigo mesmo, desesperou-o a própria ignorância… Tanto tempo perdido…
Mas sorrira para aquela moça magra, miúda, que, apesar de ter uns 35 anos, não usava na mão esquerda nenhuma aliança.
Ariane…
Ela tirara a cópia do xerox, mostrara outros livros. E, num ímpeto desconhecido, a convidara para um café ali defronte:
– Ainda faltam 40 minutos para a biblioteca fechar, fica pra outra vez.
Mas ele esperara. Olhando disfarçadamente as páginas do outro livro emprestado, pudera observar a delicadeza dela no vaivém entre estantes lotadas, tinha mãos tão delicadas e rápidas, intimidade com os livros como se os lesse há séculos.
Finalmente, faxineira pousara o balde e encostara a vassoura de cabo amarelo no balcão quando Ariane sorriu pra ele:
-Então, podemos ir…
Voltou tarde para casa naquele dia. Tomaram muitos cafés, um olhando pro outro, ela contando que era sem filhos, viúva, que fizera pós-graduação em Letras. Prestara concurso, se apaixonara pela biblioteca, aquilo lá era sua vida, declarou por fim, a mão no queixo, tão pequena, um ar infantil no jeito alegre de passar as mãos pelos cabelos. Estava escrevendo um livro sobre leitura. Conhecia Alberto Menguel?
Não, não conhecia, mas falava sem parar, era tão tímido, agora falava sem parar, ria pra ela, ela ria pra ele. Encantados.
A gravata dele meio torta, o terno mal cortado, uns sapatos inadequados; ele era bonito, ela pensou quando colocou a bateria do celular para recarregar, já em casa. Bonito, mas tão raso…
IV
Ariane , na manhã seguinte, abriu os olhos como se recém-nascida das águas, Botticelli. E de olhos abertos no escuro do quarto imaginou: ele não entenderia se escrevesse isso …
Mas era tão bom pensar em Dédalo, que com ele começou a construir asas, assim, tão de repente. Lembrava-se da figura mitológica tão bela: Dédalo e os projetos do Labirinto de Creta, Dédalo construindo as asas de fuga, ah, Arquiteto!
Ele apareceu na mesma tarde e na mesma tarde beijou-a no estacionamento . Passou a mão pelos cabelos dele, sobre as sobrancelhas, tateando, de olhos fechados, pela testa, depois nariz e boca, o rosto inteiro, pescoço, mãos, essas unhas quadradas, ah, esse ar em mim, piloto de mim, dá-me asas, asas, tece os meus vôos, desvia o meu destino, leva-me longe…
Quando abriu de novo os olhos, ele inclinara a cabeça, assim sorrindo, que tem você? Esquisito…. nunca ninguém me tocou assim…
Ela riu:
-É bom?
-É diferente.
Ela imaginou que teria querido dizer que “era livre”, sem quase saber o que dizer. Sem dor.
Era tão estranha – pensou Dédalo desajeitado, arrumando a gravata que , enquanto alvoroçadamente tocava nele, houvera entortado.
Depois, sozinho, deitado no escuro do quarto que estalava madeiras, sem dormir tal qual ela, pensou que Ariane era mesmo uma mulher diferente. E era.
Na cama, os dois se buscavam furiosamente, Dédalo um dia houvera esquecido aqueles afagos intensos, ela se apertando contra ele, coxas e tórax, seios e nádegas, ela tão diferente de qualquer mulher que ele conhecera. O corpo dela pulsava no ritmo do seu, buscavam juntos a luz que jorra entre os jardins dos labirintos. Explodiam em luz, soluçavam quase. Ele notara uma coisa – outra?- muito estranha nela: ria, solenemente ria como uma doida de olhos esgazeados, quando buscava com ele o gozo. Ficava olhando pra ela, o jeito dela, rindo assim, na meia luz da tarde. E mesmo que bem moça não fora, Botticelli a pintaria nua em pêlo, rindo, rindo, como se doida fosse. Rindo como se fosse uma mulher recém-nascida.
Na frente dela, sentia-se incomodado. Ela usava o talher com desenvoltura, ele mal sabia como comer usando a faca na mão direita , cortar carnes que, a gosto dele, sangravam.
Ariane olhava-o cheia de amor, ah, diamante bruto…
E começou a ler, ele. A mulher estranhara.
Um dia, chorara enquanto Ariane, com a cabeça dele no colo, lera uma passagem de um romance. Amor perdido, amor nunca mais achado, ah meus buritizais cobertos de verde… Ah, será que mereci você só por metade?
Quase lambera o sal do choro, porém apenas acompanhara o fio da lágrima escorrendo do olho esquerdo, num sulco já da face, pequeno rio salgado e tão longe o Egeu.
Perguntava coisas, lia métodos, artifícios, Platão pulou da capa de marroquim vermelho entre seus dedos, aprendeu coisas que o espírito guardava, sem ela jamais conheceria, Palas.
Tomava a cabeça dela entre as mãos, sussurrando coisas absolutamente desconexas: fiandeiras, Parcas, Estações, metáforas.
E sua boca tremeu quando ela, depois de um longo fim de semana , presenteou-o:
-Olha o que eu trouxe pra você, Dédalo…
Ele abriu a pequena caixa, Pandora, e de lá de dentro saltaram coisas estranhas demais: uma folha de violeta, uma flor de jasmim, um livro antigo, uma moeda pequena , um desenho de um pássaro, um pequeno e intocado tablete de chocolate e dois comprimidos contra dor.
De novo inclinara a cabeça, entre risonho e perplexo, o olhar indagador, surpreso.
É pra você saber que por onde passo e no que vivo, Dédalo, de tudo você faz parte…
Pela primeira vez dissera bem alto, sem nenhum pudor:
Eu adoro você, meu amor.
Ela ria jogando a cabeça pra trás, sem ela era mesmo um solitário, estava sofrendo por ela:
Não posso mais viver sem você…
De novo ela fechara os olhos e tateara sobre o rosto dele, dizendo não-me-deixes entre suspiros, que esse amor é para sempre, meu amor. Não-me-deixes sozinha repetia, e ele dizendo nunca-que-te-deixo-meu-amor…
Ele não entendera, mas entenderia um dia a falta dela, daquelas mãos sobre o rosto, os cabelos afagados, daquele riso no escuro, procurando gozos, naquele mar de angústias onde ela boiava quando na ausência dele. Um dia, meu amor, você vai morrer de saudades…
V
Ele estava sofrendo de amor.
Nos instantes-eternidade que passava longe dela, sofria.
O cheiro dela ali, grudado às narinas dele, as mãos se espalmavam sobre a mesa, alcançavam o globo redondo de vidro onde boiavam folhas n’ água, os seios dela assim, a palma de sua mão. O riso dela, no escuro, para sempre o riso dela nos escuros, nos ermos dele, o perfume que ela usava se espalhando pelo mundo.
O projeto aberto à sua frente, o amigo que falava sobre o projeto, ele se lembrando de seus vôos rasantes, labirintos-jardins. Ah, como doía a vida, faltas!
-Dédalo? Está se sentindo bem? Tão perdido aí, os olhos olhando pra nada.
Vamos lá, desculpe, estou cansado hoje.
Mas não era, estava sofrendo de amor guardado… Estava surpreso com os sentimentos que vinham nítidos, aquela mulher que saltava inesperadamente da vida, uma coisa absurda estar assim, enovelado nos fios dela, com aquele cheiro na carne, com aquela carne faminta, com aquela boca desejando a dela, o corpo gritando palavras de ordens, meu amor, meu amor…
As reuniões eram longas e tão desnecessárias, repetiam coisas, a secretária anotava, olhava para ele espantada, aquele gesto novo de passar a mão pelos cabelos, impaciências. Acendeu o cigarro e soprou com violência e inquietude, mexia as canetas, desenhava círculos da folha em branco, onde, antes, anotava meticulosamente cada item discutido.
E depois saía apressado, esquecido da fome e do trânsito, querendo que Ariane não se esquecesse dele pelo amor de deus, o afeto virando necessidade, ela chovia sobre ele suas mil palavras, ligava para ela , dizia que nunca, nunca amara assim tão impacientemente, eu quero você para sempre na minha vida, meu amor.
VI
Algumas vezes ela choraria em segredo, esperando notícias dele. Eram os dois, assim juntos, uma impossibilidade. Choraria demais. Soubera, desde o princípio, que ele era casado, que tinha filhos, que era, até sua chegada na vida dele, uma pessoa acomodada, sem muitos planos de vôo, sem muitas asas de sonho.
Um homem raso, enfim. Raso nos desejos que jamais tivera, mas projetando asas.
Com ela, explodira um vôo esquisito, intempestivo, que o atordoava.
Queria tudo: ela, a família, a vida calma, os dias planejados em calendário certo, 360 dias no ano, 30 dias no mês, 24 horas no dia. Era um homem comum, cuja gravata fabricava prisões sem esperanças.
Ela ousava voar sonhos, nutrir fantasias, sofrer com seus afetos, paixão.
Entristeceu. Minava.
O que era na vida dele, então?
Era, tristeza , mas era, apenas uma mulher na cama, esta, a que fechava os olhos, a que decifrava os mitos, a que lia textos, a que o afagava , endoidecida e em brasa.
Nunca o vira dividido, era sempre o mesmo.
Nasceu a marca tênue da mágoa, cresceu o rio de fúrias, transbordaram vagas nela: nunca me quis…
Brigaram.
Ele dizendo que a amava, ela entendendo que jamais o teria, nem era preciso mais, nada mais queria, embora não conseguisse se livrar dele, em que teias, Dédalo, você me envolveu para que eu adoecesse de paixão?
Poderia sofrer, ele. Mas nem sabia, essa falta da superioridade dos que mergulham fundo fez com que um dia Ariane, ao vê-lo de cabeça baixa, repetindo infinitamente que a amava, gritasse: Se você é tão covarde assim, Dédalo, não vale do meu amor os preços que pago, as dores que sinto, as solidões do meu peito.
Ele apenas repetia, infinitamente repetia, que a amava tanto, tanto.
Gritou que era covarde, que se fosse ele, se fosse você, ah, Dédalo, enfiaria o cano de uma arma na boca, apertaria contra o palato e dispararia, vida sem peso no mundo , coisa sem medida e sem sonhos, menos que um rato. A fúria arrebentara nela com todas as vagas, menos que um rato, você é menos que um rato…
Dédalo não olhou os olhos dela, envergonhado. Nem a fúria o alcançava, nada. Era apenas um homem sem sonhos, vulgar e acomodado. Nada mais.
Não me ama tanto assim, pensava Ariane enleada nos seus fios.
Mas as Parcas teciam em segredo o destino. Secretamente, Átropos puxou-lhe o fio que as outras teceram e mediram. A tesoura pontiaguda surgiu nas mãos da Parca, a velha encarquilhada, mãe de todas as vidas, tinha decidido por ambos: meses que não se viam, já.
VII
No café, defronte à biblioteca, ele olha pelo vidro. É inverno. Ele a vê, mas ela não o vê.
Ele se lembra do que dissera: “Se vc não tem coragem pra viver, enfie um cano de revólver na boca, Dédalo, aperte o gatilho. Não hesite, aperte logo o gatilho.”
O garçon, espantado, viu quando o homem sentado solitariamente naquela mesa tirou do bolso uma arma. Mas ficou imóvel, tal como Dédalo também teria ficado imóvel ao encontrar o Minotauro, em meio aos escuros de seu , em Creta, Labirinto. Não conseguiu fazer um gesto sequer, entre o espanto e a covardia, homem banal entre outros homens banais que era.
Olhou ainda uma vez através dos vidros do café: Ariane, qual o fio que me deu, Ariane, sem que eu soubesse como desenovelá-lo?
Ela não sentia saudades, pensou, não olhou para cá nenhuma vez.
O coração de Ariane estava , no entanto, como os abismos sem luz de Creta, labirintos sem saída.
O homem enfiou o cano do revólver na boca. O garçom fechou os olhos. E, após a explosão, o fio de sangue veio escorrendo devagar pelo azulejo, devagar como a própria vida, até que lambeu o chão, até que parou, rente ao chão onde, à noite, sempre trafegam os ratos.
Labirintos, esta vida sem saída.
Foi assim.