A garota levantou cedo e se preparou. Vestiu seu surrado vestido florido que de florido já não tinha nada, por conta das infinitas lavadas. Ajeitou os cabelos mirando-se num caquinho de espelho que sua mãe trouxe para casa, achado em algum lugar. Comeu pão de ontem e saiu para a escola. Verificou se tudo estava como a mãe pedira.
Abriu a porta e o vento frio da manhã lhe fez arrepiar. Esfregou os braços para espantar aquela sensação que até parecia mal agouro. Sabia que caminhando ia esquentar. O dia ainda estava escuro começando a encher-se de clareiras luminosas. O caminho era longo, de pedras soltas, que a fazia tropeçar. A primeira etapa era a mais difícil. Deveria transpor a porteira que ficava no alto da estrada. Mas até lá, havia uma subida íngreme que a obrigava ir devagar.
A essa altura do dia sua mãe já devia estar cansada de trabalhar. O saco de algodão que ela carregava deveria estar lotado e já devia ter sido esvaziado várias vezes. Ela era muito rápida.
Depois da porteira vinha uma longa descida. Uma curva e um rio. Ali era o melhor do caminho. Uma grande amiga a esperava todos os dias. A qualquer tempo e hora ela estava sempre lá. Ao seu lado descansava um pouco. As vezes, comia parte do lanche da escola e ainda se refrescava na fonte que jorrava da pedra ali pertinho. Molhava os pés sem tirar os chinelos de borracha. E por mais que demorasse sua amiga nunca lhe punha pressa. Parecia gostar de sua companhia.
Antes de contornar a grande curva do caminho já a avistava bem pertinho do riacho. Hoje o vento estava calmo e não atropelava os seus galhos. As folhas balançam suaves como se estivesse a lhe acenar. Sorriu feliz e apressou o passo. Estava na metade do caminho. Mas algo estava errado. Havia muitos homens vestidos de macacões amarelos, trator, caminhão…
Seu coração bateu apertado. De longe ainda, pôde perceber o movimento de um dos homens retirando da carroceria do caminhão uma motoserra. De súbito compreendeu o que estava para acontecer. Com seus pequenos pés já cansados, os cadernos pendurados em pequeno bornal que cruzava seu corpo, partiu em desabalada carreira.
Quem a visse diria que fugia de um agressor. Seus cabelinhos amarelos e despontados se mantinham no ar. Gritava “pare” e continuava se aproximando sempre correndo.
Os homens desprevenidos e tomados de surpresa estacaram. Se agruparam e de longe viam aquela pequena menina correndo em desespero. Alguns pensavam que havia sido picada por um animal peçonhento. Outro achava que estava correndo de medo de alguma coisa que a tinha assustado. Um homem vestido diferente e com boné de plástico vermelho também apareceu.
Ficaram imóveis olhando e aguardando o momento de acudir aquela pequena criança que se aproximava demonstrando extrema aflição. Todos possuíam família e imaginavam seus filhos na figura daquela criança sozinha e desesperada, andando tão cedo por aquela estrada deserta àquela hora do dia. O que atormentaria uma menina tão pequena?
Não haviam, ainda, saído desse estado de catatonia mental que os envolveram e foram atingidos por golpes de chutes, pontapés, murros, arranhões…Não entendiam o que se passava. Acordados com a gritaria e o impropérios da criança tentaram contê-la a muito custo. Não que os homens não pudessem com ela, mas pelo medo de machucá-la se a prendessem com força.
A menina ao perceber que não daria conta daquelas mãos mais fortes que sua vontade, conseguiu soltar-se e agarrou-se a árvore escondendo o rosto, molhado e transtornado, no pequeno braço estendido que tentava abraçar aquele tronco como se fosse um ser humano.
Os homens não diziam nada. Olhavam-se indecisos como a perguntar-se um ao outro “E agora o que fazer?”. Recuperando-se do imprevisto, o homem de boné plástico vermelho fez sinal para que aguardassem. Aproximou-se de mansinho receoso de assustar e também de levar algum susto daquela pequena criaturinha, foi falando devagarinho com a pequena. Perguntou seu nome, o que estava fazendo ali, para onde ia e aos poucos foi conseguindo se fazer ouvir.
A menina diminuiu o choro e devagarinho levantou o rosto molhado encarando o homem. Os outros estavam ao redor aguardando. Viu novamente a motoserra e agitou-se. Soltou-se da árvore, pondo-se de costas para ela como se seu pequeno corpo pudesse protegê-la e dizia: “Você não vai matar minha amiga. O nome dela é Flora Rosa. Ela não te fez nada. Ela é quietinha. Não sabe nem xingar. O que foi que ela te fez para vocês virem aqui e querer derrubar?” Neste momento é que os homens entenderam o que se passava. Respiraram aliviados. A criança estava bem. Restava agora resolver a situação. O chefe, o de boné, passou a explicar que estavam iniciando uma estrada e que teriam que tirar a árvore dali. Ela estava no caminho.
A garota desesperou-se novamente. Afastou-se da árvore e com as mãozinhas esticadas mostrava que ela estava bem apertadinha perto do rio. “Você vai por sua estrada na água vai? A estrada não pode passar aqui?” E apontava para o outro lado em direção aos homens.
Não havia acordo. Ela voltou a sentar-se ao pé da árvore agarrada nas próprias pernas desanimada e soluçando.
Os homens se afastaram sem saber o que fazer. Aguardavam ordens. O chefe comunicou-se por rádio com alguém e após longa conversa decidiu que iria pessoalmente ao escritório resolver a questão. Aproximou-se da criança e disse que tentaria fazer alguma coisa pela sua causa. Ofereceu-se para levá-la ao seu destino. Deu algumas ordens e se afastou levando a garota. Ao deixa-la em frente a escola, a garota lançou um olhar súplice e pediu pela última vez: “Por favor, salve minha amiga.”.
Seus olhos pequenos, pedintes e tristes, emocionaram aquele homem, que afagando seu desgrenhado cabelo prometeu fazer o que pudesse.
Naquele dia, a garota de volta para a casa, na carroça junto a mãe, no sacolejo rude do transporte, mantinha-se num estado de mutismo e tristeza. Sua mãe, cansada, até percebeu, mas nada comentou. Limitou-se a apressá-la para o banho e a pedira ajuda no preparo do jantar.
O sol acabara de se por e o dia ainda não tinha caído nos braços da noite. Acabara mais um dia na singela rotina de Lelena. Pouco depois estava dormindo com o pouco conforto já costumeiro. O dia seguinte a esperava, qualquer que fossem os sentimentos: bons ou maus; felizes ou tristes.
O cantar do galo demonstrava que o dia amanhecia. A mãe de Lelena, ao sair, acordava a filha, pedia que não esquecesse de fazer suas obrigações e saia para a lida.
A menina espreguiçou-se e pondo os pés no chão de terra levantou-se. Comeu o pão com café que a mãe lhe deixava num prato tampado. Pegou uma lata transformada em canecão, com o acréscimo de um cabo de madeira e passou a encher uma tina dágua. Lata a lata deu as onze idas e vindas até o trabalhos ser completado. Uma vez a tina cheia vestiu-se para ir a escola. Hoje usaria seu outro vestido. Ou era esse ou aquele, não havia mais.
Apagou o fogo que ardia no meio dos tijolos que servia de fogão. Fechou a janela enroscando o barbante no prego e a porta com o costumeiro pedaço de mourão que já ficava à mão. Novamente se pôs a caminho. Seu coração estava opresso. Não veria mais sua amiga. Não acreditava que sua árvore seria salva. Tantas coisas já tinha desejado e nada conseguira. Desejara tanto uma boneca no Natal que vira na venda e não tinha ganho. Ardeu em febre e só ganhou um chá amargo.
A essa lembrança um arrepio lhe percorreu o corpo como se houvesse acabado de tomá-lo novamente. Afastou aquele pensamento e continuou. Depois de passar a porteira, já no início do declive, diminuiu os passos como se quisesse retardar o momento de chegar na curva do caminho e constatar sua certeza.
De olhos no chão seus pés a levava. Reunindo toda sua coragem levantou os olhos e para sua surpresa a árvore estava lá. Suas folhas balançavam como se a chamasse. Lelena correu para sua amiga e demorou mais do que era de costume. Comeu todo seu lanche, outro pão guardado embrulhado em papel da venda. Estava com fome. Bebeu a água cristalina da fonte e seguiu para a escola.
Durante meses viu os trabalhadores construindo a estrada. Muitos a cumprimentavam chamando-a pelo nome. Pois a história do seu desespero tinha corrido chão. Mas seu semblante era de uma criança feliz, como todas deveriam ter.
Nunca mais viu o homem do boné vermelho. Terminada a obra sua amiga estava lá, verdinha e florada, repleta de flores rosa: Flora Rosa…estava magnífica. Um dia, aquele destinado a compras na venda, Lelena dizendo ir brincar na praça, se dirigiu a um escritório numa das ruas da pequena cidade. Queria ver aquele homem que salvou sua amiga. Carregava na mão uma pequena muda de árvore. Numa casa antiga transformada em local de trabalho encontrou o que procurava. Uma vez no interior desta, esticou-se para enxergar acima do balcão e anunciou com quem queria falar.
Os funcionários entreolharem-se e o moço abriu pequena portinhola do balcão dando-lhe passagem. Certamente também sabiam da sua história, pois quando passava as moças cochichavam algo e sorriam. Seguiu o rapaz que lhe indicou uma porta.
Sob os olhares atentos de todos do escritório ela pediu licença a um homem que se mantinha debruçado em alta mesa de desenho. Ao ouvir o pedido da garota, voltou-se e admirou-se. Aquele pequena garota desesperada, de tempos atrás, em nada se parecia com essa que estava agora à sua porta com um lindo sorriso no rosto. Convidou-a para entrar com toda atenção que dispensava aos seus clientes. A garota explicou que trazia uma “filhinha” de sua amiga, para que ele se lembrasse sempre daquela árvore do cominho, sua única amiga e confidente.
Lelena marcou para sempre a vida daquele engenheiro. Sua história ficou conhecida. A árvore em questão virou “a árvore de Lelena”. E quando sua professora lhe perguntou o que desejaria ser quando tivesse que escolher uma profissão, ela disse que seria “uma protetora da natureza”.
Não se sabe hoje, o destino dessa garota que inspirou essa história. Mas sabe-se que existe nas Organizações das Nações Unidas uma brasileira que é nascida por estas terras e há quem jure de pés juntos que é a pequena Lelena, que na infância não sabia sequer seu nome …..era somente a Lelena sozinha, pobre e de vida extremamente difícil….mas que adorava as plantas e a natureza.