O Colecionador de Máscaras

Ela viu o homem parado à sua porta, por detrás da vidraça, pareceu-lhe enorme, quis dar-lhe o sinal com as mãos de que aquele restaurante há muito não funcionava e o luminoso frontal só não fora retirado por distração. Ela desejou mas não o fez. Observou-o girar a maçaneta com força, derrubando a taramela, e ouviu o rangido da porta a se abrir. Ela, então, conteve-se para não gritar atrás do balcão : -“O senhor não está reparando na tabuleta da janela com as inscrições maiúsculas ­ FECHADO? Por que, ao menos, não apertou a campainha? Não percebe que sou uma mulher que precisa ser preparada de véspera? Necessito de pausas para ensaiar o corpo, treinar a voz, misturar as especiarias e deixar as carnes de molho? Não! Eu não sou dessas mulheres que pegam no estalo ou nos trancos e barrancos.”
O homem entrou no pequeno salão com passos decididos, olhou para os lados, sentou-se na única mesa existente, como se não tivesse a mínima pressa. Ela reparou que ele não usava relógio no pulso. Na parede central, o seu velho cuco estava estragado e a posição dos ponteiros indicava seis horas por toda eternidade. Ali dentro, o tempo estava dividido em duas fatias : uma desperta e a outra, sonolenta. Em qual delas, ela perguntava-se, estaria o homem de olhar vigilante? Na metade que amanhecia ou na outra a anoitecer?
Talvez, ela pudesse se aproximar e explicar educadamente: – ” Senhor, o restaurante está fechado há algum tempo. Motivo? Ah, sim…falência. O senhor compreende que nesses nossos anos de carestia, as pessoas preferem a lanchonete da esquina, serviço rápido, de qualidade duvidosa ou , então, a churrascaria do próximo quarteirão, com seu bufê farto de frios e sistema de rodízio. Senhor, desculpe-me…só restou do passado este cardápio, a toalha bordada e o arraiolo do chão. Quanto a mim? Talvez seja apenas um pequeno fantasma cheio de lembranças”.
Sim! Ela deveria lhe falar isto. Decidida, abandonou o esconderijo e dirigiu-se até o homem, na ponta dos pés.
Foi aí que ele percebeu-a e seus olhos se cruzaram. Ela reparou que o homem possuía íris amarelas. Isso trouxe-lhe a recordação de que quando criança costumava desenhar o sol como esses olhos : redondos e raiados de traços, feito as rugas da testa que se formavam pelos supercílios suspensos, na expressão de curiosidade que iluminava o rosto do desconhecido. Olhos amarelos…olhos que vinham em sua direção mais rápidos do que suas pernas. Olhos de gato! Ela poderia gaguejar : -” Não servimos peixe, senhor. Mas ela não diria isso…não! Ela não diria nada. Aqueles olhos capturaram-na e ao chegar mais perto, percebeu sua pupila contraída como uma pequena mulher aprisionada, a se debater com suas últimas forças.
Ela estava diante de um homem determinado que detestava ser contrariado. Estava ali um homem que merecia e deveria ser servido. Ela improvisou o lápis para anotar seu pedido, completamente dominada, confusa e intranqüila.
-Há algum tempo, li este cardápio e o achei interessante ­ ele falou com voz clara ­ É um cardápio, como diria? Feminino e sensível. Gostei!
Ela deveria agradecer? Seria este comentário um elogio ou a elegante tentativa de se alimentar de um cavalheiro esfomeado? Não. Isso, não. O homem de olhos amarelos era um gourmet, teria paladar apurado, língua com bom fio. Mas por que esse homem estaria em sua biboca de beira de estrada, cai-não-cai, fincada numa ladeira? Desejava variar o menu?
-O senhor está a passeio na cidade?
-Não ­ ele respondeu mecanicamente enquanto percorria a lista dos vinhos- Sou um colecionador de máscaras e vim até aqui para comprar uma ­ completando como se compreendesse a curiosidade da mulher ­ Sou das terras do leste. Existe a diferença de fuso horário de uma hora para onde moro.
Ela , de imediato, compreendeu . O homem possuía os olhos amarelos porque pertencia ao ocidente onde o sol nascia. Ele amanhecia mais cedo . E ela? Ela trazia olheiras roxas, olhos de sombras e presos ao oeste onde sol se punha. Ela tinha os olhos da lua.
-Só há vinhos doces na adega.
-Doces? Não. Eu os prefiro amargos. Nesse caso, traga-me água gasosa e o couvert.
Ela afastou-se lentamente. Alguma coisa naquele homem a amedrontava e a atraía. Desejava fugir mas sentia-se demais fraca. Fora caçada e abatida, sem a mínima piedade. Mas como podia acontecer isso? Durante anos, fora uma atleta das ratoeiras, dera rasteiras em todas as armadilhas, tripudiara iscas de todas as espécies, desenvolvera reflexos, aprendera a ser veloz…Ela, então, riu tristemente, sempre fora uma tonta assustada e nada mais do que isso. Nada mais do que isso!
Ao retornar com a bandeja, ela reparou que ele lhe aguardava com os óculos suspensos na testa, o que lhe dava vários efeitos no rosto. O homem havia se armado. Ele agora tinha dois olhos cegos, além dos dois amarelos.
Eram quatro olhos a serem saciados.
-O senhor já escolheu o prato principal? ­ ela perguntou perturbada, servindo a mesa.
-Uma sereia.
-Uma sereia?
-Sim, desejo comer algo como uma sereia.
Ele riu…imediatamente suas feições suavizaram, cicatrizando as marcas. Existiam dois homens : o homem que fazia humor, de bem com a vida, e o outro…o colecionador de máscaras. Qual deles teria os olhos amarelos? Qual deles se utilizava de óculos? Qual desejava a metade mulher da sereia? Ela propôs:
– Por que não alcachofra? Acredito que o senhor nunca a tenha experimentado.
– Alcachofra? ­ ele repetiu com olhar divertido ­ Mas como se come alcachofra?
A verdura roxa, em forma de lágrima de espinho. Coração! Complicado coração!
– Como se come uma alcachofra? Ora, com a boca…
– Não sou eu o único a fazer piadas.
– O senhor me desculpe pela brincadeira.
– Há coisas, senhorita, que comemos com o peito e outras com a cabeça, nunca reparou nisso antes? Há coisas, por exemplo, que se come com outras partes do corpo… ­ ele observava-a com atenção fora do comum.
– Como se come uma alcachofra, o senhor perguntou, não é? ­ ela mudou o assunto de forma brusca- Devagar…come-se devagar. Chupam-se as folhas, uma a uma, escorregadias pelo molho de manteiga, descascando-as com a boca até se atingir as farpas que guardam a polpa. Confesso que, na maioria das vezes, as pessoas não têm paciência e desistem.
– Não, desejo me alimentar sem grande sofrimento…sem tanto cuidado.
Estava ali um homem pragmático, experiente e objetivo. Estava ali uma mulher patética e ridícula, tão inocente, oferecendo alcachofras.
– Deve existir outra opção além de sereias e alcachofras ­ disse persuasivo mantendo uma atitude conciliatória.
– Claro. Claro ­ ela pensava confusa ­ Que tal uma omelete de trufas?
– Trufas?
– Cogumelos que nascem nas raízes os carvalhos. Nada fantásticos como sereias e nada extravagantes como alcachofras, mas muito raros…Sim! Raros.
– Então está decidido a questão. Comerei uma omelete de trufas.
O perfume…Ela reconhecia o cheiro dele, aquele cheiro pertencera-lhe. Coentro! Sim! Ele estava amaciado com a essência desse tempero- provocava o gosto picante, maliciosos e ardente. E ela? Ela sentiu o aroma da palma de sua mão : alcaçuz! ­ propriedades medicinais do alívio e da cura. Ambos se permitiam atingir sem sutilezas.
E, quanto aos olhos amarelos? Estes olhos chorariam? Como seriam suas lágrimas? Redondas e espessas como a de um azeite? Como seria, enfim, o pranto dos olhos do sol? Por certo, secaria rápido demais. Talvez eles chorassem nuvens ­ pranto gasoso e invisível. E como seria o riso da mulher dos olhos de lua? Enigmático e negro como a noite? Riria estrelas?
Ao retornar com o prato de trufas, o homem não estava mais. Ela viu a porta aberta e sentiu a aragem no rosto como um suave tapa de mãos molhadas. Observou a mesa onde ele sentara-se. Seria apenas um sonho?
Não…definitivamente, não o fora. Estava ali o resto do pão, crostas e miolos, como o corpo remexido de um anjo.
Sentiu vontade de correr atrás dele e gritar: -” Senhor, por favor, e as trufas? Esqueceu-se tão rápido assim? Por que não aguarda mais um pouco para que complete o serviço?”.
Em cima da mesa, o pequeno embrulho com o bilhete : ” Não há cinzeiros à mão, decidi lhe oferecer este para que se lembre de mim”. Por que ele não lhe dera uma vela? Velas derretem mas não destroem…mantêm a substância. E o que ele levou dela como recordação? O recorte de seu rosto assustado? Mas, enfim, o que ele levara dela? Senão uma máscara, apenas um véu. Delicado véu que não iria servir para sua coleção.
Ele voltaria? Quem o sabe? Mas o que isto, enfim, importava? Ele dera-lhe o pequeno ataúde para recolher as cinzas daquele instante. Ora um homem macabramente sensível…E como podia ser isso se gostava de sorrir? Ela estremeceu, sentindo nas mãos o peso do prato de trufas.