Como é bom acordar num domingo de brisa leve e faceira a nos lamber o rosto e as pernas preguiçosamente… dá para arrebitar o nariz e farejar o outono que vem chegando para além de onde o olhar faz a curva, distante ainda, mas já pressentido no olfato mais atento. Aliás, como é bom estar atento às transformações que ocorrem na Terra e em nós mesmos! É a forma mais completa de poder sentir-se vivo e pulsante, partícula integrada à energia infinita que movimenta os seres.
Hoje acordei com esse jeito solto de criança marota e, não sei por que motivo, o amanhecer sereno colaborou para isso. Lá fora é carnaval e só o que ouço são os sons da natureza, que se mantém exuberante mesmo sob o tórrido verão. As batucadas são as de um coração não tão pacífico, esse órgão que funciona independente e sai pelo mundo a arranjar problemas, pouco ligando para as minhas vontades. As lantejoulas e confetes vêm das árvores do quintal da casa ao lado, em forma de folhas, diminutas e muito verdes, que ultrapassam o muro e caem na minha calçada. O sol faz as vezes de purpurina e despeja brilho pelo dia, na preguiçosa displicência do feriado. Tudo o mais é alegoria e adereço com os quais enfeito minhas fantasias e saio a desfilar na passarela misteriosa do samba que não há, abrindo alas com o estandarte da tranqüilidade.
Adoro o silêncio contemplativo das manhãs de domingo, quando todos ainda dormem e fico com a sensação de que o mundo é inteiro meu. Hoje até lavei a louça do café sem birra, distraída com pensamentos leves, tolos e inúteis, aquelas coisas nebulosas que ocupam a mente quando não queremos pensar em nada mais profundo do que o saber as horas ou o nome de uma rua. Aproveitei para ouvir o silêncio cheio de vibrações, o esfregar da esponja em uma e outra xícara, o tilintar de talheres, mais a água que corria sobre a louça entre minhas mãos ensaboadas. Não gosto dos trabalhos domésticos, mas hoje até isso pareceu-me agradável.
Estava distraída na cozinha quando olhei pela janela. Ontem comprei um bebedouro para pássaros e dei uma espiada para ver se estava em ordem. Tem as extremidades alaranjadas, corpo transparente que acondiciona água com açúcar e, na base, quatro imensas e coloridas flores plásticas. Um bebedouro igual a qualquer outro, usado para atrair colibris. Comprei na esperança de alimentar alguns passarinhos que vivem na porta da cozinha à procura de migalhas; se eles viessem já seria ótimo. Mas, sinceramente, achei impossível atrair colibris – ou qualquer outro pássaro – com aquela coisa chamativa e artificial. Até imaginei as aves rindo às gargalhadas, no alto das árvores, da minha tentativa simplória. Assim mesmo, pendurei o tal bebedouro, com seu colorido discretíssimo, ao lado da samambaia, entre os varais de estender roupa. Sempre me senti bem com a proximidade de pássaros e seu cantar é por demais harmonioso para ser desprezado. Resolvi tentar.
O ato de olhar para a janela e gritar foi simultâneo, resultado do susto pelo inesperado. Dois passarinhos se deliciavam com as flores adocicadas, voando de um lado a outro. Espantei-os com a gritaria, mas contive a alegria e fiquei à espera de que voltassem, silenciosa, atrás do vidro. Bastaram poucos segundos para que os dois viessem, trazendo um companheiro. Eram cinzentos e com as penas das barrigas esverdeadas, com uma faixa branca que lhes circundava as cabeças. Não conheço muitas espécies, por isso não pude classificá-los. Mas eram lindos e mal acreditei que o tão espalhafatoso bebedouro funcionava.
Continuei ali, absorta, mesmo depois de terem ido embora. De repente, voltaram os três e, na maior algazarra, beberam juntos o líquido doce. Junto deles, maravilhoso e esverdeado, um colibri! Não acreditei naquilo. Chegou com toda a calma desse mundo e, como as flores estavam ocupadas, sentou-se sobre o varal para aguardar a vez. Um beija-flor sentado, de costas para mim, com seu corpo fino e alongado, parecia uma visão impossível. Esperou até que os outros saíssem e então foi sugar as flores, uma a uma, com seu bater de asas vigoroso e barulhento. Os outros pássaros bebiam a água retida no reservatório, ele espetava o biquinho no miolo de cada flor. Foi e voltou repetidas vezes e nem se importou quando cheguei a menos de dois metros dele.
Muitas vezes hoje os pássaros voltaram, inclusive o colibri. Não sei se eram os mesmos, mas aprenderam o caminho e vão trazer amigos. Talvez se habituem aos meus olhares deslumbrados e permitam que chegue mais perto. Temos muito tempo, água e açúcar para nos conhecer e fazer amizade. Espero descobrir e fotografar novos visitantes todos os dias. Amanhã vou comprar mais um desses bebedouros – vermelho – e pendurar em outro canto do meu minúsculo pátio. Quero a sinfonia de pardais de que fala uma velha canção sertaneja, muitos colibris e, quem sabe, até mesmo majestosos sabiás.
Mas o que desejo mesmo, com todas as forças, é jamais perder o dom de me encantar com os quase despercebidos e espetaculares milagres que a natureza oferece a cada instante e que deixamos de ver, muitas vezes, porque temos coisas mais importantes a fazer…