Manhã de Segunda-Feira

Inquietude. Manhã de segunda feira. Banco. Fila. Espera interminável. Calor.
Duplicatas. Cheque especial. Limite. O senhor de chapéu contando o dinheiro. Chapéu e bengala. E barba branca. E calça cáqui. E camisa azul com dois botões abertos. Sério. Sisudo. Talvez viúvo. A mulher e o bebê de mês e dia no colo. As mãozinhas dele mexendo. Assustado. Precisado de um benzimento. Devia ser quebranto. Dona Inês podia resolver tudo. Era só levar um saco de balas para as crianças da creche. A velha de bermuda e pernas finas. Blusa de viscose sem mangas. Meio surda. Meio tapada. Que nem a senha sabia digitar. O sorriso meio de lado do caixa. Cansaço já válido para a semana toda. A porta que trava meio mundo. A moça elegante de saia e salto. O guri mascando chiclete. O “boy” da pastinha preta. A grávida arfante. O gerente ao telefone. O empresário e o empréstimo que não pagou. Água. Café. Gente entrando e saindo. Gente saindo e entrando. E ela ali. E ela ali sentada esperando a vez. Pagar e pagar e pagar. Era só o que sabia fazer. Pagar e esperar. Sempre. Mas bem que esperar não era assim tão ruim. Esperar era melhor que fazer. Que havia a expectativa. E depois tudo passava e ficava o futuro do pretérito. O podia. O devia. Foi assim na última vez que Romeu ligou. Ela estava a escovar os dentes. Sozinha em casa. O creme dental num cômico papel. A escova metida na boca. A espuma branca lembrando um cão raivoso. Mas de raiva nada havia! Estava era muito feliz. E atendeu Romeu daquele jeito mesmo, espumante. Ainda bem que ele nem podia imaginar a grotesca cena do outro lado da linha. Ela falava meio mole e a pasta começava a cair pelo roupão cor de rosa. Pedir licença nem morta. Seria perder uma oportunidade tamanha! Mas a espuma começava a secar e a arder. E ela não agüentou e pediu licença por um minuto. “Não, meu amor, era só o interfone tocando”. E o não devia ficou claro porque perdeu o fio da meada e passou a falar de visitas inesperadas. E o fim da conversa foi decretado por um conselho do outro lado: “vá atender as visitas senão elas ficam perdidas”. Ela quis protestar mas era tarde demais. Então desligou e foi se bater no espelho. Por que não havia deixado a espuma lá? Que se danasse a alergia que viria depois! E um ódio dela mesma se apoderou dela. Então ela riscou todo o espelho de batom. Rabiscos ininteligíveis. O mais puro ódio! Era uma tonta que não sabia aproveitar as oportunidades! E se ligasse e retomasse o assunto? E se ligasse e fosse direta: “vem logo que não agüento viver sem você!” Romeu tomaria um susto. Ficaria atordoado. Louco. E então ela seria a mulher mais feliz do planeta. Mas podia ser o contrário. Romeu poderia considerá-la vulgar. E então tudo estaria acabado. Melhor esperar. Que a espera ainda era o melhor remédio. Mas remédios são sempre amargos. Mesmo aquele xarope de morango que tomava quando criança. Uma vez teve dor de garganta e tomou um de laranja. Um tal de “Ilosone”, era isso mesmo? Mas não agüentou e vomitou. Se fosse a avó da beira do rio ia falar “gumitou”. Essa avó também falava “bassoura” e “vacia”. E pitava lá pelas bandas do bananal. Era um tempo esquisito. Ela via só as sombras. Percebia o pai levantando no escuro e saindo do quarto. E via a Dona Marcela se mexendo também. Iam conversar, ora pois! E a mãe estava cansada e dormia. Só as sombras. Só as sombras. “Homem é tudo igual”, falava a avó da beira do rio. E a mãe chorava pelos cantos. Agora entendia tudo. Romeu não ia ser assim não. Que se fosse, ai dele! Coitadinho, ia levar um chute bem naquele lugar! E só de pensar ela cerrava o punho. Tamanho ódio. Tão grande quanto no dia que pintou o espelho de batom. Ela andava mesmo meio revoltada. O salário não dava. Romeu não se decidia. E ela plantava e plantava e a semente não germinava. A chuva não vinha. E então tinha de ficar mesmo esperando. Esperando a boa vontade de São Pedro. E o salário atrasado. E a decisão de Romeu. E então ela olhava do lado e via o rapaz de boné, sentado também. Fila que já não é mais indiana. Modernidade. O mundo das senhas. Dos computadores. Da realidade virtual. E o caixa chamando um por um. A senha dela era a sessenta e três. Ainda faltavam vinte e duas. Ufffff! Mais uma hora de espera, no mínimo. Sempre que vinha ali era barrada naquela porta desgraçada. E o segurança: “são as chaves, senhora”. E então ela deixava as chaves. E de novo era barrada: “é o relógio, senhora”. E ela deixava o relógio, o anel, a pulseira. E de novo era barrada: “é a alça da bolsa, deixa eu liberar a porta”. E ela falava um palavrão por dentro. Que por fora fazia uma bela cara feia. Daquelas de assustar em Dia das Bruxas. E já entrava nervosa, como se não bastasse o limite estourado. E ela pensava que pra tudo enfrentava filas. Desde os tempos da escola. “Meninas de lá, meninos de cá”. E a “tia” lá na frente. Por ordem de chamada ou de tamanho. E ela nunca ficava na frente. Nunca. Porque era alta e porque o nome não ajudava. Mas havia um filósofo, ela sabia, havia um filósofo que falava que os últimos seriam os primeiros. Quem era mesmo? Não importava. Ela andava afastada de tudo. Fosse quem fosse não ia modificar nada. No momento, só Romeu podia fazer alguma coisa. Só Romeu. Mas ela não era uma Julieta tão dedicada. Queria e ao mesmo tempo rejeitava a idéia toda. Um paradoxo. E ela imaginava no quanto seria bom ter um homem movido por um controle remoto. Era só ligar quando bem quisesse. Quando estivesse sozinha e quisesse ver a lua. Quando fosse descer a escada de salto alto. Quando fosse a um restaurante ou a um baile. Quando estivesse carente. Porque nas outras horas era um estorvo. E ela não suportava ter de se derreter toda só pra satisfazer os desejos dele. Egocêntrica, claro! Ela bem se via assim. E uma pontinha de arrependimento surgia lá no fundo do peito. Uma pontinha que ela fazia questão de apagar como quem pisa numa bituca de cigarro. Ela pisava com todo o peso. E então lembrou da história do amigo que foi pisar na bituca e esqueceu que o sapato estava furado. Quaquaquá, o sapato furado! E a brasa pegou em cheio! Quaquaquá! E ela suspirava fundo enquanto o rapaz de boné apenas olhava para frente. E surgia uma vontade de dizer: “ê, ô moleque, você tem um cabresto é, filhadaputa?” Que ele fazia questão de nem sequer olhar para ela. E ela se sentia feia e cada vez mais feia porque o rapaz não a notava. Teve vontade de esbofeteá-lo. Quis mostrar a língua, como fazia quando criança mexida por adultos insanos. Limitou-se a morder os lábios. Não havia passado batom. Mas quem é que ia pensar em batom em plena manhã de segunda-feira cheia de contas a pagar? Patifes! Senha cinqüenta e um. Mais doze e pronto, era ela. E só de pensar sentia um frio na barriga. Mais dinheiro voando. Contas, contas e contas. Pagas e nunca mais vistas. Dinheiro perdido. Imposto do carro. Seguro de vida. Água. Luz. Telefone. Banco era sinônimo de aborrecimento. Nem aquela senhorinha ali, de coque na cabeça, saía feliz. Ciente de que a aposentadoria mal pagaria a farmácia. E aquele senhor balançando a cabeça. Decerto era a hipoteca que não conseguia saldar. O pior eram os escriturários e seus óculos na ponta do nariz e calculadora agindo com desespero tomando cafezinho em copos de plástico. Na maior calma do mundo. Que a pressa era coisa alheia. Que problemas eles não tinham. Que tudo seguia na perfeita paz de Deus. E ela olhava aquilo tudo com desdém. Como se aqueles seres não passassem de vermes sugadores. Vermes que só sabiam fazer contas e contas e contas a ponto de nem olhar para os lados. Como o rapaz do boné. Mas o pior de tudo era o calor. Um calor de desesperar. E aquele tumulto logo cedo. Gente e mais gente e mais gente. De todos os tipos. De todos os gostos. Gente. E ela nem acredita quando enxerga o painel: “Senha 63. Favor dirigir-se ao caixa 5”. Era ela! Onde estaria o controle remoto para chamar Romeu para pagar as contas?