Luisa,
Desculpa a demora mas você sabe como é a vida na metrópole…mil compromissos, mil convites, mil horários, mil crises. Depressão. Mas é muito interessante conviver com tantas cabeças ( várias pensantes; outras nem tanto ), camufla aquela solidão aguda que me ataca quando eu tranco a porta do apartamento e saúdo todas aquelas criaturas inanimadas que me fazem companhia nesse day by day.
Ah, querida, como foi interessante aquele monólogo que Carlinhos estava montando! Eu tive o prazer de opinar em umas partes, e você bem sabe quão modesta eu sou, elas ficaram muito …bem, muito, incrível a gente conhecer algumas coisas tão bem, às vezes como ninguém, e acabar por não saber caracterizá-las, não acha? Por isso esse mundo das Letras é sempre cada vez mais fascinante. Eu busco uma intimidade, que já concluí ser inalcançável com os vocábulos e isso é frustrante, em muitos casos, mas não deixa de ser instigante. Achei que a minha participação foi bastante significativa e estou orgulhosa. Ninguém conhece Caio F. como eu, claro que não poderiam me deixar de fora. Ah, Caio, a vida grita e a luta continua… Maravilhoso o Caio.
Cheguei a chorar semana passada…encontrei tantos livros de ponto de cruz, bordado inglês e todas aquelas obras de arte, coisa bem de senhora sem nada para fazer, eu sempre achei, mas arte, não deixa de ser arte, que mamãe adorava. Acho que acho tão arte e tão lindo todas essas coisinhas porque sempre que olho para alguma lembro das mãozinhas brancas e pacientes de mamãe. Tão linda aquela cena, parece cena de novela antiga mas tão lindo mamãe cosendo, não era, Luisa? Cheguei a chorar dentro da livraria, um mundo de livros, existem várias assim por aqui, eu não sei como não me perco, mas até mapas existem em algumas! Ainda quero aprender ponto de cruz para fazer quando ficar velhinha. Quando ficar velhinha, quero parecer um pouco com mamãe. Sabia que eu andava pensando sobre isso e vi que você está cada vez mais parecida com ela? Não que você esteja velha, claro que não, você ainda está jovem e linda mas mamãe sempre foi linda, mesmo velhinha. E eu sei que há meses não nos vemos, culpa minha mas que eu sempre jogo nas letras, na cidade grande, no Carlinhos, mas noto pelas cartas, pelos telefonemas, pela voz. Pela saudade que sinto também, Luisa, você está muito a mamãe.
Andei procurando largar o cigarro mas você sabe, mil preocupações, eu não consigo nem tentar. Mas, olha, já venho pensando no assunto. Carteiras de cigarro estão cada vez mais caras e se eu estou mesmo me dirigindo para um câncer, é a sua cara me dizer isso, que seja me contaminando com bons tragos. E como são prazerosos meus tragos. Mas, vou largar, Luisa, vou largar. Só não lhe prometo porque seria demais não cumprir uma promessa que fiz a você mas sei que você me perdoaria se eu não conseguisse e você fosse me visitar com todas aquelas suas frutas, frutas gostosas de interior, quando eu estivesse lá, deitada e desenganada num leito de hospital. Diagnóstico: câncer. Mas a Luisa tinha advertido.
Lu, e as crianças? Da última vez, você se queixou tanto de Caíque, que ele sai toda noite com os amigos malucos. Luisa, você me mata de rir…já te falei que não existe maluco em cidade pequena, não se preocupe, Caíque é um menino ajuizado. Um rapaz ajuizado, Caique cresceu e eu não estava perto mas sempre carreguei dezenas de fotos no albunzinho que levo dentro da bolsa. Sempre levo. É como se levasse vocês, é como se levasse todo o meu tesourinho que eu guardo no interior, bem protegidinho e que vai sempre estar esperando por mim. Amo vocês tanto…droga de cidade grande, droga de letras, droga de cigarro. Marina deve estar mais linda que nas fotos, você sempre me diz que ela está. E deve ser tão meiga ensinando aquelas criancinhas, eu não tenho paciência com crianças mas amo meus sobrinhos, que cresceram mas que eram as crianças mais lindas do mundo. Marininha, a criancinha mais linda do mundo, dando aula…Deve ser uma cena sublime, assim como mamãe cosendo, assim como você me oferecendo frutas, isso é importante pra saúde, Carolina. Eu amo vocês. Você sabe que não sou muito ligada ao Ernesto, ele é muito fechado mas o amo também, quer dizer, quase chego a amá-lo por causa de vocês. Ele devia sorrir mais mas olha quem fala de sorrir, eu não sorrio muito, você sabe, aliás você não sabe, foi a cidade que me fez assim. E são as letras que me salvam. Droga, eu pinto a cidade de inferno mas você sabe que isso é metonímico, a cidade não é um inferno, eu me refiro a tudo o que acontece aqui. Tornam a cidade um inferno…Mas eu escrevo muito e as letras sempre me salvam.
Ainda não arranjei um marido mas vou continuar procurando também para você não se preocupar mais comigo. Não sei mas acho que seria mais econômico e menos desgastante comprar umas plantas ou outro bicho quieto, um peixe, não um peixe, não, peixe só fica com aquele olhão vigiando tudo o que a gente faz. Ainda bem que peixe não fala porque se falasse…Lu, que boa idéia! Vou já escrever um conto sobre um peixe. Um peixe bem gordão, obeso, que vive sozinho num aquário, num aquário bem sujo, que vive olhando o que os outros fazem, aprende com os erros dos outros e torna-se o animal mais sábio do mundo. Mas que apesar disso, ele é infeliz porque não pode sair daquele aquário para errar como os outros, para viver como os outros. E a inveja dele de quem vive suja mais ainda o aquário. Será que ele morre no final? Hum, vou pensar num final sarcástico para esse conto, odeio peixe! Acho que é por isso que eu como tanto peixe e mastigo bem devagarzinho, do jeito que você diz que faz bem pra saúde. Ah, querida, impressionante como até sem saber você me ilumina, o conto de peixe vai ficar uma delícia.
A Carolina já está fugindo sobre o que eu perguntei sobre aquele namorado, você está pensando isso, eu sei que você está. Eu sempre sei o que você está pensando e sempre sei o espera de mim também. A gente é tão diferente e eu te amo tanto e a gente sempre sabe o que a outra está pensando. Não posso dizer que é coisa de irmã porque eu não tenho outra, só tenho você mas é divina essa nossa telepatia. E eu sei que você gosta de me ouvir falar, de como você gosta dos meus textos mesmo não entendendo, às vezes, mas você sempre acha tudo lindo, coisa de poeta. Mas eu sei que você detesta quando eu fujo do assunto. Então, aquele cachorro daquele Mário me deixou mesmo, ai que conversa de mulher abandonada e sem amor próprio mas eu não gosto de riscar nem apagar nada. Nem numa folha de papel nem na vida mesmo. O erro tem que ficar lá para você olhar, encarar, analisar e até sofrer de novo com ele se for preciso, para não repetir. Toma, desgraçada, quem manda se meter com esse tipinho?…Ai, que linguagem, Carolina!!! É você que está falando isso mas olha que estou moderando, aqui na cidade as pessoas têm a boca tão suja, Lu, um horror. Eu acho feio, não escrevo palavra feia, muitos escrevem, falam que é para ser bem contemporâneo e bem real. Eu não. Palavra feia, o mais real que for, eu não escrevo. Então, ele me deixou, não ligou mais, se foi só sexo, eu não sei( eu sei que estou sendo bem forte mas eu preciso desabafar, Lu ) mas acho que não, eu não tenho muito talento lá na cama e também não gosto de falar disso, acho grosseiro. Então vai ver que foi isso, eu não sou vaidosa, nem sensual, nem quente, nem selvagem, nem dona-de-casa, nem meiga, nem submissa, nem safada, nem pervertida. Eu sou só Carolina Muniz, jornalista louca de cabelo despenteado e jeito desengonçado e com umas idéias legais na cabeça mas com uma incrível dificuldade de me relacionar com os humanos. O que é isso, eu já tentei com análise, escrevendo, meditando mas acontece que eu sou estranha mesmo, minha vida é a eternização da fase gauche de Drummond e sem aqueles poemas indefectíveis, claro. Ai, sou louca por Drummond. Ele é demais quando fala que “Todos os homens voltam para casa / Estão menos livres, mas levam jornais / e soletram o mundo, sabendo que o perdem “. Eu casava agora com Drummond. Mas eu dormi mesmo foi com Mário, que me deixou, irmã. Mas não se preocupe, só acho que por essas e outras seria mais seguro comprar plantas bem estáticas ou até um desprezível peixe gordo do que viver com um bicho homem.
Hora de ir para a editora. Eu tenho hora para tudo, para escrever, escrever sob pressão é o fim, Lu, você não sabe como odeio, ou melhor, você sabe. Hora para ir para o analista, hora para bater o ponto, hora para almoçar no shopping em meio aquele movimento frenético do comércio e das criaturas loucas, tipicamente citadinas. É estressante almoçar no shopping. Só não tenho hora mesmo para dormir porque eu nunca consigo dormir na hora certa. Mas é para isso que existe Lexotan. É para isso que serve meu salário, para comprar mil remédios e mil carteiras de cigarro e mil livros e mil canetas porque eu ainda sou fiel a caneta, você sabe, apesar do computador travar constantemente uma perseguição implacável contra nós, escritores, escrevedores, você lembra que eu falava que queria ser escrevedora quando virasse gente grande?
Se precisar de alguma coisa, favor, dinheiro mesmo, eu sei que o Ernesto não gosta mas eu sou sua irmã, posso te dar o que eu quiser. E eu juro como se pudesse te daria tudo. Te amo muito, beijo nas crianças e no teu marido risonho todo! Toda vez que termino uma carta tento botar um abraço dentro ou um pouquinho de amor dentro desse envelope mas nunca cabe. E olha que às vezes mando umas caixas enormes…cabem todos os presentes menos o meu abraço.
Sua irmã…
C.