Chica era mulher.
Perdoem-me o aparente pleonasmo, e logo na primeira linha a comprometer o estilo, mas ainda guardo a estranheza de encontrar sentido diferencial na junção de dois elementos que a princípio denotam um outro, redundante. O afirmar que o ser humano do sexo feminino, chamado Chica, era mulher mesmo, resultou de um certo processo de contrapor pessoas e respectivos gêneros, cuja conclusão apenas transcrevi. No princípio era visível a concordância entre os dois termos, mas apenas só possível, depois; seguiu-se veementemente a negação em passo ulterior e, no final, a verdade transpareceu irretorquível: da síntese de Chica, consigo, surgiu a mulher que se diferenciava dela.
Não me tomem por alguém de tempo sobejo e a brincar com palavras, a gastar letras, papel e olhos leitores, somente para dizer que uma mulher é mulher. Se dizem da paciência uma virtude, digo da impaciência e da irritação que às vezes são desagradáveis sintomas do trabalho árduo, determinado e persistente. E se já não houver irritação em demasia, podemos perseverar como soldados obstinados e corajosos, avançando até o objetivo final destas linhas, onde a nossa vitória talvez se represente pela correta compreensão acerca da afirmativa: Chica era mulher. Se não, ao menos nos restará uma agradável sensação de alívio pelo fim do martírio, na honra do dever cumprido, mortificados lado-a-lado tentando.
A constatação de ser Chica uma mulher decorre de um segredo que se ocultou durante uma vida inteira; segredo que se guardava sob a sua inabalável têmpera de guerreiro e como fosse, a mulher, um homem insensível ante a morte, sofrimentos e trabalho.
Por favor, não façam maus juízos. Não diferencio os fortes dos fracos pelo sexo que ostentam, nem me dou a escalonar a força do caráter por essa distinção absolutamente física e natural. Mas considerem, a mulher é muscularmente mais frágil que o homem e não guarda em si a obrigação de vencer diariamente o espinheiro das barbas; ela é naturalmente mais emotiva, docemente chorosa e habitualmente cuida-se mais; o que nela jorra e flui da persistência, delicadeza e obstinação, no homem comumente chama-se às marras da força bruta, rudeza e teimosia. É muito aceita, como razoável, a metáfora entre a mulher e a flor, por motivos sabidos há muito, como também o é aquela entre o homem e o cavalo. Ambos os sexos se envaidecem com isso: a mulher entre sorrisos rubros, construídos delicadamente roseáceos; o homem, entre o avultar do tórax e o acentuar da sua virilidade, batendo os pés no chão. Do bom temperamento e caráter, ao homem, dizem “nervos de aço”, “caráter férreo”; à mulher, de todo criticável esse eufemismo, dizem “uma grande mulher”. Comparados os dois elementos de diferente expressão, no final das contas determinam-se absolutamente iguais porque afirmam os mesmos dotes. Imagino esse abrandamento, que se define pela diferenciação sexual, mas para dizer-se a mesma coisa, na pretensão de serem evitadas as maldosas chacotas pelo agregar de acessórios simbolicamente rudes, portanto másculos, a um principal de delicadeza, eternamente simbolizado pela flor, portanto pela mulher e enquanto mulher.
Mas vamos adiante com essa têmpera da nossa Chica, que peço aceitem, ao menos retoricamente, como masculina.
Saída de família simples, como filha tardia de pais velhos, Chica, nascida Francisca, não recebeu os habituais mimos que se concedem ao rebento caçula; antes, tão só obteve os afazeres acumulados por restar solitária numa casa já deserta dos irmãos, todos em lugares incertos. Digamos que ela se educava na palmatória do trabalho árduo, determinado e persistente. Casada jovem, seus perfumes e atrativos faziam-na, à época, uma “boa mulher” para se desposar; matrimônio daqueles em que se esquece a aliança na cozinha, ao pé do fogo pela manhã, e que se encontra no asseio e ordem da casa, nas brasas da noite. Chica, com algum remorso, assim deixava o seu antigo lar completamente deserto à pregação dos pais em idade avançada.
O esmorecimento, algo tão insidioso a tantos, em Chica se negava pelo simples fato do seu viver; obstinada e corajosa, ela era soldado sempre avançando. Por isso, novamente acumulou afazeres, somando os da nova casa, de exigente marido, com os da antiga, de seus velhos pais.
As gentes de Chica, de uma forma ou outra, se foram entregando ao pó. Primeiro o pai, doente e acamado, por muito tempo a depender dos cuidados pessoais de Chica. Dele restava apenas um velho ser humano, às portas da morte, mas até o final de sua existência um homem dando à filha o exemplo de nervos fortes e corretamente estirados, ensinando-a a não chorar. Quando o pai se foi, Chica não chorou; simplesmente encarregou-se dos funerais, enterrou-o e pagou a conta, como ele, um homem, o teria feito. Depois foi a vez da mãe, a nunca emotiva, avarenta nas lágrimas e raramente a se cuidar, mas um exemplo de resignação e persistência, especialmente quando ao lado do marido em sua morbidez. Nas derradeiras, a velha apegou-se obstinadamente ao trabalho de viver até o seu último instante; várias vezes desenganada, não cedia à morte de jeito algum. Até a vizinhança já se punha em ares filosóficos nos comentários próprios a um certo tipo de fardo, que sempre está no meio do caminho, e se dá ao exame de olhos torcidos, mas novamente se vê deixado ao só planejar da sua futura remoção; a um local definitivo, menos inconveniente e, se possível, bem longe das vistas. Chica, da doença à expiação da mãe, também cuidou-a pessoalmente; era a velha, pelo sangue, o parente último a lhe restar próximo, ainda que pouco vivo. Chegado o tempo do inevitável enterro da mãe, a filha também não chorou aos pés do caixão, nem em lugar algum, e permaneceu inarredável daquele cheiro da morte encaixotada ao seu lado; mostrava a todos que era mesmo uma autêntica descendente da estirpe defunta. Para finalizar, Chica não teve filhos e o seu marido, por isso já retinindo um excedente de moedas pelos bolsos nos seus momentos de reflexão – eram os sucessivos velórios passados na incompreensível aridez da esposa – deu-se a pensar fosse mesmo aquele o destino da mulher: o de sempre restar solitária e “encarregada dos afazeres” até que aprendesse a chorar. Bem, ele tratou de rapidamente antecipar-se a coisas tão misteriosas enquanto ainda estivesse no mundo dos vivos, e sobre a terra, cuidando de logo dar-se ao pó, o da estrada, deixando atrás de si alguma porção de mau cheiro e outro tanto de diabos que o carregassem. Escafedeu-se com uma incerta chorosa, cheirosa de outros perfumes e atrativos, a quem prestara conforto numa das suas casualidades. Por certo, e simbolicamente já lhe parecia mesmo o adequado, foi o modo mais gentil que encontrara de ser o morto seguinte, que rumaria para o inferno.
A essas quantas adversidades, a firmeza e o caráter de Chica eram ditos “próprios de homem” e lhe trouxeram generalizado respeito e aceitamento social; primeiramente dos vizinhos, depois dos conhecidos e, por fim, daqueles mais afastados e só lembrados de vista ou de se ouvir dizer.
Nesse momento de provações superadas, Chica foi promovida de uma “boa mulher” para “uma grande mulher”. Mas criada pelo trabalho e para ele, bem sabia que reconhecimentos e aceitamentos não enchem a barriga de ninguém; principalmente a dela que não se dava a roncos de manha. Por isso, logo se desfez da última casa e passou no dinheiro a memória daquele morto que não morrera. Chica voltava ao seu restar solitária na velha casa paterna, o único abrigo possível na consumação desses fatos. Também conseguiu emprego para seus braços, então surgindo-lhe à face um espinheiro de todos os dias e que começava a enfrentar.
Era Dona Alice o tal espinheiro. Um serviço pesado, que se entregava para homem e por vários deles já refugado; coisa para o masculino de verdade, com força, rudeza e a teimosia de um cavalo. Mas jorravam do espírito de Chica os mesmos atributos, que lhe fluiam da persistência e da obstinação, com as vantagens adicionais da experiência anterior e da necessidade do trabalho.
A bem da clareza, vou dizer que Dona Alice, essa uma viúva em sentido próprio, sem filhos e de boa renda, fora vítima de um derrame cujas seqüelas deixaram-lhe imobilizadas as pernas; ainda não muito velha, mas redonda, insuportavelmente irônica, extremamente na dependência de alguém e… muito… muito pesada. Era essa a Dona Alice, a barba diária que se espinhava no rosto de Chica e a demandar o trabalho de ser desencravada, lá do seu quarto, lavada, higienizada, aparada, bem tratada, perfumada e carinhosamente nutrida e alisada. Verdadeiramente, uma tarefa para alguém com nervos de aço e caráter férreo; bem mais que o possível para uma só “grande mulher”. Ali, no casarão de Dona Alice, o trabalho dispensava as delicadezas e abrandamentos; era o abandono de eufemismos nas expressões e gestos.
Chica foi em frente, rumo às linhas do inimigo para resolver a sua questão de sobrevivência pessoal: para vencer a velha ou morrer de fome.
E lá se foram vinte anos de luta diária; um épico de dignidade ímpar. Não havia calor, sol, chuva ou tempestade que pudessem quebrantar a sua vontade; bombas de ironia ou de pilhérias não a faziam retroceder; charcos e lamaçais de maledicências, que atravessava, não lhe criavam dúvidas no caminho a seguir. Nesses vinte anos de esforço típico de um guerreiro, de um “homem”, de um “marido” ou “pai de família”, diziam dos exemplos de firmeza e honradez – e de quanta força para arrastar lá e cá um verdadeiro fardo de proteínas, carnes, ossos e, preponderantemente, lipídios superiormente aristocráticos e zombeteiros – Chica ainda encontrava forças para aconselhar aos que lhe chegavam às fontes, algo arredios, buscando águas milagrosas para as suas aflições. Comumente surgia-lhe mediação de algum conflito, cuja justiça era distribuída, aceita e de pronto executada, como um dogma, lá das janelas do velho casarão de Dona Alice. E de tempos em tempos, algumas facções políticas representadas pelos boiadeiros do voto local, atentos à popularidade de Chica, vinham exortar-lhe ao dever cívico na recomendação de alguma das suas candidaturas. Nessas ocasiões e da mesma janela, tribuna sem bandeiras ou estandartes, os homens fortes da política ouviam silenciosamente um discurso inflamado, dito em alto e bom som, a lembrar-lhes da quanta falta de vergonha ou barbas nas suas caras, coisas que ela, a Chica, tinha muito e há muito (?!). Ao estupor de incógnitas que causava a “grande mulher de barbas”, talvez ao medo de que ela, já exercitada em tantos pesos, saltasse das janelas e partisse para as vias de fato, sobrevinha uma só fala: “Certo, certo, Dona Chica, não se exalte, imploramos. Vamos deixar para outra ocasião…”. E na platéia ficava uma impressão: se Chica resolvesse candidatar-se a alguma coisa, votariam nela por respeito ou por medo. A mulher soldado seria fatalmente um grande coronel, temida por ser um homem forte, rude e teimoso, que fazia e faria correr a outros igualmente temidos; esses, decerto, não pelos mesmos princípios de honradez e de caráter.
O povo da cidade, e agora sem qualquer maledicência, dizia de Chica “um verdadeiro homem”, que se mostrava pela têmpera de fino aço dos seus nervos; pela sua força e caráter que eram de ferro, há muito dispensados os eufemismos ou abrandamentos simbólicos. Até mesmo viam transformar-se em respeito a pegajosa zombaria de Dona Alice, talvez pelo seu medo de perder uma segura e agradável dependência de alguém tão forte. A tanta transformação, e a todos, Chica respondia com os mesmos sorrisos pétreos, vincados no mármore do seu rosto; especialmente em consideração a Dona Alice e por dever de gratidão a quantos anos de contrapartidas ao seu sustento.
Esses vinte anos, vividos por seu espírito, o foram em dobro no trabalho sofrido por suas costas, cuja cavaleira e dona era outra, e sem qualquer dia de descanso que se fizesse um pequeno acessório da sua vida verdadeiramente rude, máscula e cavalar; que lhe proporcionasse, ao menos, a vaga lembrança de um esquecido principal de cuidar-se, de delicadeza feminina; um dia ainda em flor da manhã, fosse apenas, como aquelas que nascem e se vão no ocaso; vida efêmera, desse a si, como singela flor. E tão só, como o que já se basta para revelar-se a mulher, latente, no descanso de um homem.
E aconteceu que Chica, no simples acordar de um dia, sentiu-se estranhamente irriquieta, impaciente, mal humorada, pela primeira vez na vida esconjurando-se do trabalho. Jamais havia xingado, algo ou alguém, e logo pela manhã já acumulava blasfêmias impensáveis e mortais mesmo para a boca de um homem rude. Algo lhe mexia nas entranhas e de lá a irritava. Já seria a sua vez de finalmente conhecer a solidão da morte? Nada podia dizer a esse respeito; nem mesmo dispunha de alguém a quem dizer daquela sensação de estar se rompendo interiormente. Chica, ainda inconsciente do seu inteiro acerto e razões, apenas pensava que a velha Chica não veria o sol do dia seguinte.
Assim foi para o trabalho, no arrastar de pernas desobedientes, pesadas e cansadas pelo caminho; apanhou-se nervosamente a rir, por um momento, pois acudia-lhe lembrança das pernas de Dona Alice… E como desde casa planejado, lutava para calar um inimigo visceral com todas as forças reunidas no seu campo de batalha interior.
Chegando ao casarão de Dona Alice, Chica subiu as escadas e correu ao lavatório para preparar-lhe o banho matinal. A água, como sempre ao gosto, era a mesma morna de vinte anos, naquele mesmo vaso antigo; calma, parada, e a espelhar de Chica os esconjuros de horas antes. Esse espelho foi quebrado pelo arremesso de algumas gotas de essência de flores, cujo perfume, de tão conhecido, nada representava além do mesmo ar que seria respirado nas doze horas seguintes. E apressou-se em direção ao quarto de uma Dona Alice já ansiosa de higienes. A velha, com vinte anos de experiência e destreza, além da absoluta confiança na montaria, chegou-se às rédeas e ordenou passo picado no rumo do lavatório. Chica nada falou, era seu necessário voto de silêncio, e deu início ao ritual de despir, de assentar, de higienizar a velha, erguendo-a, abaixando-a, virando-a, tratando de ampará-la, e isso até que Dona Alice, antes mesmo do seu banho, resolveu encurtar-me a estória:
– Ah… Chica, minha santa… Eu aqui, te dando essa trabalheira toda… Velha, aleijada, pesada…. Eu tanto peço a Deus que… que me… você sabe… Faz muito tempo que já estou assim manobrando, manobrando e manobrando…
Até hoje, Chica, aquela Chica, não sabe explicar as razões de um movimento final de ruptura das suas fibras interiores, talvez a conseqüencia de um derradeiro esforço, mas a verdade é que lhe fluiu, das profundezas da alma, a erupção de um magma repentino:
– Não adianta ficar aí só manobrando e manobrando, Dona Alice. A senhora também precisa apitar e partir de uma vez! Ô trem!
Foi isso. Naquele instante, Dona Alice teria vivenciado o milagre de uma existência, tão grande o impacto do seu espanto, se por uma fração de instante pudesse desviar dos olhos o choque inicial e canalizá-lo, antes da apoplexia, para os seus membros inválidos; certamente teria se levantando e caminhado para fora do lavatório com as próprias pernas… Mas nessa repentina transformação, de ambas a manifestação de opostos tão inesperados, talvez o destino tenha feito a sua comparação e determinado a negação do milagre de Dona Alice em nome de outro.
Talvez sim, talvez não, mas pela força daquele hoje só deixado às nossas conjecturas, impossível afirmar, Chica, pela primeira vez, revelou-se verdadeira mulher, a Francisca. Mulher na essência do espírito, no lirismo de suave poesia a mostrar que por muito tempo cultivara secretamente uma gota de lágrima, enfim a brotar e a aflorar singelamente do seu velho jardim interno. Uma única lágrima, uma única flor; nascida algo rude e campesina, é verdade, mas entregue com surpresas e recebida entre sorrisos seus e de Dona Alice.
Digamos um símbolo, essa flor; como o possivelmente imaginado e a sinalizar consideração, agradecimento, ou mesmo desculpas entre duas mulheres, duas velhas amigas…
Outro símbolo, houve ainda, daquele momento em que Francisca chorou a sua própria metáfora entre a mulher e a flor, desta feita sabida por motivos de só agora. Chica, o homem, partira para sempre, cedendo lugar a Francisca, a mulher. Transformada, a flor, campesina e poética, ainda se adornava com um único orvalho, uma lágrima também nascida solitária naquela sua primeira e verdadeira manhã que despontava.
Enfim, um ou outro, importa que a lágrima-flor de Francisca, cultivada por uma vida inteira, assim que vista e entregue, se deixava depositar naquele vaso de água límpida e batismal, preparado para recebê-la, e fazendo de si o respingar volátil de um agradável perfume de alfazemas.