O dia amanheceu chumbo. Fechado, ar parado. O sol se acovardou e nem chegou a nascer. A luz vinha difusa, confusa, não conseguia vencer as nuvens carregadas. Mas não chovia. Ficou naquela situação de nem sim, nem não. Dia apropriado para se ficar em casa roendo beira de penico. Melhor era nem se mexer, ficar na cama. Dia merdalhento.
Mas quem não tem ao menos um compromisso num dia desses? Eu tinha. E tinha que ir à dentista, pra acabar de vez com o meu dia. Já escolhi dentista fêmea, porque achava que ela tinha mãos macias. Isso para não piorar o meu dia. Feio desde a manhã, quando tomei café com pão amanhecido. Gosto de papel rasgado. Dia em que não se acha nada engraçado.
Mas fui. Só porque havia marcado, porque vontade eu não tinha nenhuma.
No semáforo, aquelas moças que vêm entregar lixo pra gente. Normalmente, recebo sem achar ruim. Mas, hoje não era um bom dia. Tive ímpetos de mandar enfiar em algum lugar. Mas me calei.
Cheguei à dentista um pouco adiantado, embora tenha tido as normais dificuldades para estacionar. A recepcionista morena, dentes pequenos e alvos, os olhos mais verdes que já vi: verde-água, verde-musgo, verde-água rasa, verde-água funda, verde mais que a Amazônia, verde-escuro de matos trancados, onde tudo se esconde. Vontade imensa de afundar lentamente naquelas águas esverdeadas em busca de uma esmeralda.
Além de tudo, ela se chamava Virgínia.
Nem mesmo ela, com o seu sorriso amistoso, seus pequenos e brancos dentes de gata siamesa, conseguiu me animar. Claro que eu sabia que o seu sorriso era profissional, educado, mas a esperança também não tem a cor verde?
Nem terminei meu amargo cigarro na recepção e fui chamado para o cadafalso. A dentista me fez ficar deitado naquela cadeira como um morto, de boca aberta, arreganhada, mas tanto, que achei que ia deslocar o meu maxilar. A parte superior caindo para trás, como um boneco desarticulado. E enfiou ganchos na minha boca, passou uma broca ardida, que eu sentia varando o vazio do meu cérebro, zumzumbindo infinita. Momentos de maior preocupação: quando senti os seus seios no meu nariz. E eram quentes e macios. E quando ela quis pôr o joelho no meu maxilar inferior, para forçar uma abertura maior. Receei que ela caísse pela minha goela adentro, tentando agarrar-se na minha língua, e me imaginei num conto do Borges, ou do Cortázar.
Engoli a dentista. E ela passou a habitar dentro de mim, uma mulher dentro de um homem. O inverso de tudo. Minha ilógica, descuidada e gástrica prisioneira. Indigesta. Ela com aquela broca na mão, me corroendo por dentro, como uma úlcera irritada. O sofrimento durou menos que trinta minutos, mas a mim pareceu que quatro séculos e meio se escoaram ali.
E eu que nem me lembrei de lhe pedir que afiasse os meus caninos.
Mas não lamento, porque pretendo encerrar minha breve e acidentada carreira de vampiro. Devido à atual escassez de gargantas e à possibilidade iminente de choque anafilático, afora outros inconvenientes menores, mas humilhantes, como ter batido num poste em pleno vôo. Além disso, meu grito ultra-sônico anda fraco, já não consegue cruzar ares e mares, alcançando a Europa Central, minha terra natal. Me perco nos rasantes, minhas asas estão assimétricas. Envelheço.
Saí de lá tonto. Cambaleei até o meu carro e imediatamente pensei em ir para casa. Mas, parei no caminho, na subida da colina, e entrei no Shopping. Era hora de almoço, mas eu não tinha fome, não depois de ter ingerido uma dentista inteirinha, junto com boa parte do seu instrumental de tortura. O que me atraiu para o Shopping foi uma voz poderosa e um som de zabumba, sanfona e triângulo.
Era o Dominguinhos, o baiano, fazendo um show promocional de alguma coisa que não sei o que era. Sentei-me no chão e fiquei ouvindo-o cantar com sua voz ecoante toadas pungentes falando do gado magro que fugia da seca, da gente magra que fugia da seca, do pássaro negro e magro que fugia da seca, do pássaro branco que fugia da seca, de tudo que era magro, branco, preto e pobre, que fugia da seca. Depois, o ritmo se acelerava freneticamente, em franco baião, e todos se regozijavam com a chuva que caía, com as plantas que teimosamente renasciam. Como um milagre. Os riachos transbordavam. E tudo voltava a ser verde, tão verde quanto os olhos daquela recepcionista. Mas os que fugiram não retornavam mais, pouco se lixando se o verde novamente se instalara na caatinga. Ficavam em São Paulo, na construção ou tocando zabumba. Às vezes morriam na marginal, em tempo de enchente, por absoluta falta de adaptação ao hostil meio hídrico.
Fiquei lá, ouvindo. E vi os ágeis dedos do Dominguinhos percorrendo o teclado da sanfona de cento e vinte baixos numa atordoante velocidade. Pareciam pequenos seres meio gordos que, independentemente da vontade dele, corriam para cima e para baixo numa dança maluca.
Quando o show terminou e as palmas se acalmaram, já no clap clap esporádico, aproximei-me e pedi a ele um autógrafo. No meu talão de cheques, que eu não tinha outra coisa. Ele me olhou e perguntou se era para mim mesmo. Eu respondi que sim, e lhe disse o meu nome. Ele escreveu “com um grande abraço” e assinou com uma letra escorrida como um ribeirão entre pedras no sertão do nordeste.
Devolveu-me a caneta e me disse: “Deus te conserve, compadre”. “A você também, a nós todos, compadre” – retruquei.
E vim me embora pra casa, que o meu dia começava a melhorar. Embora eu ainda não saiba como resolver o caso da dentista. Ela está quieta, no momento.
Talvez eu me encoste num canto, em decúbito dorsal, e fique em silêncio esperando esse dia terminar.