Penso muito. Às vezes penso demais. Com freqüência ouço meus colegas de trabalho pronunciar meu nome em voz baixa, quase sempre acompanhado de adjetivos como “neurótico” ou “pirado” ou “alienado”. Não os culpo. Mas que posso eu fazer se meu espírito de poeta recusa-se a se deixar prender pelos mesmos assuntos que os apetecem? A mim não atormenta o fato de que o aumento dos juros decretado pelo governo vá arrefecer o crescimento industrial; tampouco me causam indignação os escândalos de corrupção divulgados pela imprensa.
A mim preocupa a perversa alquimia que transmuta um par de corpos jovens e ardentes num casal de velhos rancorosos e enfastiados. A mim preocupa o Azevedo, meu colega de trabalho. Azevedo trabalha na mesma firma que eu, há dezessete anos; faz exatamente a mesma coisa todos os dias. Recebe documentos de outros setores, lê-os, organiza-os segundo critérios inconstantes, remexe arquivos, lê boletins internos, faz pausas para beber café, mastiga bolachas esfarinhentas que traz de casa dentro da pasta. Como ele há centenas, milhares, mas meu espírito de entediado elegeu o Azevedo para representar todos eles e servir de referência a meus dias sem cor. Semana passada, na sala de espera de meu dentista, li numa revista que os astecas sacrificavam uma pessoa por dia a fim de acalmar os deuses. Hoje em dia sacrificamos a mesma pessoa todos os dias. Diariamente garimpo entre as rugas amarelas do Azevedo em busca de sinais de tristeza, o que seria para mim gema preciosa, comprobatória de minha tese sobre a miséria humana. Mas nada encontro além de uma indiferença cansada e entorpecida, e isto só aumenta meu ódio em relação a ele. Droga! Já estou pensando demais outra vez.
Levanto às sete, às sete e trinta estou na rua para a caminhada de trinta minutos que me conduz à firma e ao Azevedo. Passo todos os dias diante de um telefone público que fica defronte a uma farmácia. Antigamente era um vermelho de ficha, todo riscado e rabiscado com nomes e palavrões, agora é um daqueles modernos a cartão, com visor de cristal líquido. O antigo me transmitia um sentimento de decadência, o novo, de assepsia – o que significa que não transmite nada, sei lá; ah!, meu Deus, estou pensando demais outra vez, Dr Venceslau disse para eu não pensar demais.
Dia desses, no exato instante em que passo em frente ao telefone, ele toca. Sempre soube que esses telefones públicos podem receber chamadas, talvez até já tenha antes ouvido algum deles chamando. Só sei que aquilo me deu um tremendo susto, o aparelho parecia estar me chamando. Parece haver já um consenso geral de que chamadas de telefones públicos não se atendem, de modo que as pessoas que passavam não davam a mínima atenção ao monótono gemido que brotava da garganta da máquina. E lá ficava ela, tão ignorada quanto o mendigo que, alguns metros adiante, disputava também a atenção dos passantes.
Até hoje não sei muito bem por que fiz aquilo. Quando vi já tinha parado, já minha mão viajava ao encontro de alheios suores depositados sobre o plástico negro do receptor.
– Alô.
– Alô, quem está falando? – perguntou uma voz de mulher. Parecia ser mulher jovem; jovem e sensual, toda voz de mulher ao telefone parece sensual.
– Com quem deseja falar? – perguntei já meio irritado, como é comum às pessoas que julgam estar fazendo um grande favor. Além do mais, sempre me enervam pessoas que mal pegam o telefone, já vão logo perguntando quem está falando.
– Será que daria para o senhor chamar o Marco Aurélio pra mim?
– Chamar quem?
– Marco Aurélio, ele mora logo ali no Edifício Pirassununga, logo do outro lado da rua.
– Marco Aurélio? Que Marco Aurélio?
– Ele mora no Edifício Pirassununga, logo aí em frente.
– Olha, minha senhora, eu sinto muito, mas já estou meio atrasado para o trabalho – menti, o olhar atravessando a rua em busca de algum Edifício Pirassununga.
– Mas é que é… um pouco urgente, sabe.
– Eu sei, minha senhora, mas…
– Meu nome é Regina, pode me chamar de Regininha, é como meus amigos me chamam. É que eu estava precisando muito falar com o Marco Aurélio, coisa muito séria. Por favor, moço, é só atravessar a rua e chamar ele pelo porteiro eletrônico. Faz esse favor para mim.
Suspirei, quase me acovardei, mas em tempo consegui enxergar a imagem de mim mesmo atravessando a rua em busca do amigo da Regininha, e pude experimentar uma amostra da sensação de estupidez que me acometeria após o ato.
– Você me desculpe, mas realmente eu estou um pouco apressado e não vai dar mesmo pra ir lá chamar o seu amigo, infelizmente. Me desculpe, tá?
– Ô, moço, por favor…
– Olha – a irritação ameaçou voltar -, me desculpe, mas eu vou ter de desligar.
– Ô, moço, por favor.
– Com licença, vou desligar…
– Não, espera. Por favor, não desliga. Olha, moço, eu sei que o que estou pedindo é um transtorno, acredite, eu não sou dessas pessoas folgadas, não. Mas é que eu preciso muito falar com o Marco Aurélio, questão de vida ou morte…
Desliguei.
Na firma, as pessoas se reuniam em torno da mesinha do café para conversar. Falavam de futebol. Eu jamais tomo café, meu estômago não tolera, e jamais falo de futebol, pelo mesmo motivo. Azevedo estava parado com um copo de plástico numa das mãos, uma folha de papel na outra e um sorriso estúpido no rosto – nenhum traço de tristeza, notei. O que será que a Regininha queria com o Marco Aurélio?, perguntou meu espírito de sociólogo. Ela disse que era urgente, parecia haver um tom de sinceridade em sua voz. Será que eu devia ter ido chamar? Terei causado alguma tragédia?
– Você já entregou o relatório? – ouvi o Azevedo perguntar a um dos engenheiros. Perguntou isso e lançou uma bolacha sobre a língua.
– Qual relatório?
– O relatório de testes de campo – guinchou Azevedo com os dentes incrustados de pedaços de bolacha. Esfreguei as mãos irritado. Sempre achei que devia ser incluído nos currículos escolares, como uma das sabedorias básicas da vida, que nunca se deve encher a boca logo depois de fazer uma pergunta, sob risco de o interlocutor requisitar uma repetição da pergunta e, estando o inquiridor com a boca obstruída,… Não, estou pensando demais outra vez, Dr Venceslau vai ficar puto se souber.
Afinal, não tive um dia tão mau, concluí ao chegar a casa naquela noite. Consegui retirar um pêlo encravado de dentro de minha narina esquerda. Quem já teve um pêlo encravado dentro do nariz sabe do que estou falando, requerem-se habilidade e paciência. Daqui a cem anos teremos robôs andando por todos os lados e computadores que fazem de tudo, mas ainda poucas pessoas serão capazes de retirar um pêlo encravado de dentro do próprio nariz. A tecnologia é fugaz e sem brilho, as artes e as matemáticas são perenes e glorificantes. (Após escrever esta última frase, pernóstica e pretensiosa, fiquei vários minutos refletindo sobre ela, cheguei mesmo a cogitar removê-la deste testemunho, mas desisti de fazê-lo. Afinal, quantas frases simplórias não terão sido construídas em sessenta séculos de escrita? Não creio que uma a mais vá fazer diferença.)
O telefonema de Regininha não me sai da cabeça. Sou um estúpido mal-humorado, devia ter ido chamar o Marco Aurélio. Regininha jamais teria me pedido aquilo se não fosse algo realmente urgente. Não fui porque meus preconceitos me seguraram: quem usa um telefone público só pode ser pessoa de camada inferior da sociedade, não merecedora de minha atenção, concluiu meu espírito de psicólogo. Posso ter, com minha recusa, causado um grande mal a alguém a quem o destino colocou como dependente de minha boa-vontade.
Pela manhã, acordo remelento. Dou uma rápida olhada no jornal após o café. Não sei por que assino; a mim não causam temor testes nucleares realizados por governos de países do terceiro mundo; de mim não arrancam lágrimas as imagens de um monte de gente agitando cartazes, enfrentando os cães da polícia. A meu espírito de solitário aterrorizam os estranhos sentimentos libertados em meu peito quando olho as escassas carnes de minha vizinha de doze anos, mistério e fertilidade nos perfumes de sua pele. Merda, já estou pensando demais outra vez, Dr Venceslau não vai gostar!
Súbito, meus olhos se pregam em alguma coisa no jornal. Percebo que estou na página policial. Homem de trinta e cinco anos, identificado como Marco Aurélio Bueno Serqueira, profissão advogado, encontrado morto a tiros em seu apartamento. Minha garganta fica apertada, meu coração dá um salto.
Fui eu quem fez aquilo. Regininha estava tentando salvar a vida de Marco Aurélio, avisá-lo do assassino que para lá se dirigia, e eu me recusei a ajudar.
Atirei o jornal longe. O sangue de Marco Aurélio manchava minhas mãos. Os poucos metros que eu insensivelmente me recusara a caminhar até o Edifício Pirassununga tinham sido percorridos pelo assassino. Os meus pés eram os pés dele, eu tinha matado Marco Aurélio. Regininha devia estar, àquela hora, me amaldiçoando, me chamando covarde. E é o que sou, um covarde preguiçoso, que passa os dias filosofando sobre a vida alheia, usa as fraquezas das pessoas como cortina de fumaça para evitar olhar a própria. Não sou filósofo nem poeta nem coisa alguma; sou hipócrita, decretou meu espírito de homicida.
Saio de casa às sete e trinta para minha marcha de todos os dias, desta vez me sinto pior do que ontem. Será que o Azevedo, no meu lugar, teria ido chamar Marco Aurélio? Passo em frente ao mesmo telefone. O aparelho olha para mim, há censura em seus olhos digitais. Mas ele nada dirá e isso é motivo de grande alívio.
Engano-me. Quando já estou a uns cinco metros dele, o telefone solta um grito horroroso, mais alto e mais indignado que o de ontem. Minhas pernas ficam paralisadas. Aos poucos vou-me virando. Estará ele apontando para mim?, denunciando a todo mundo o executor de Marco Aurélio? Percebo que um funcionário da farmácia em frente olha o aparelho com ares de atender. Corro para antecipar-me a ele, a ligação era para mim, era Regininha novamente, e eu iria receber humilde todas as acusações lançados por sua voz sensual.
– Alô – digo com a garganta seca, o coração disparado.
– Alô – voz de homem. Sinto uma pontada de decepção.
– Com quem deseja?
– Gostaria de pedir ao senhor um grande favor, só estou pedindo porque é muito importante, viu? Será que daria para o senhor ir chamar uma pessoa pra mim? É logo ali dobrando a esquina, depois do ponto de ônibus.
Respiro. Meu coração vai voltando ao normal.
– Olha, meu senhor, o senhor vai me desculpar, mas eu já estou um pouco atrasado, acho que não vai dar. Aliás, nem sei por que atendi o telefone…
– Eu entendo, eu entendo. É que eu pensei, talvez o senhor fosse passar por lá mesmo e poderia me fazer este grande obséquio. É que ela não tem telefone em casa, aliás, nem eu – riso grave – Se desse para o senhor dar uma passadinha por lá, é um edifício antigo logo depois do ponto de ônibus, não tem como errar. O nome dela é Regina, mas pode chamá-la de Regininha, é como todo mundo a chama.
Senti uma bola inchando dentro de meu rosto.
– Marco Aurélio?… – consegui sussurrar, o coração esmagado por indefiníveis terrores.
– Você me conhece? – respondeu a voz de Marco Aurélio após uma longa pausa.
– Então, você está… Você não…
– Quem está falando?
Fiquei mudo. Como responder a essa pergunta?
– Quem está falando? – perguntou novamente. Havia agora um tom de agressividade em sua voz.
– Você não me conhece.
– Como não o conheço? Você me conhece.
– É difícil explicar.
– Aquela vagabunda. Não é mesmo uma coincidência incrível? Era exatamente sobre isso que eu queria falar com ela. Uns amigos meus me deram uma dica, sabe? Que ela estava saindo com outro. E olha só quem é que atende o telefone, e ainda pertinho da casa dela. Ela também está aí do lado? Se estiver, fala pra essa vagabunda que eu estou indo aí acertar os ponteiros com ela, e se você estiver junto, vai sobrar pra você também, pilantra.
– Marco Aurélio, não é nada disso que você está pensando, escute…
Desligou.
Na firma, as pessoas em torno da mesinha do café. Para mim, era como se não tivessem saído de lá desde o dia anterior. Dessa vez, falavam sobre a chegada do ano 2000 e o problema causado pelo fato de o calendário dos computadores ter somente dois dígitos. Ninguém pergunta minha opinião, não sou uma pessoa estimada em meu trabalho. Também não me interessa, não me sinto desafiado por um problema causado por uma máquina estúpida que só sabe contar até cem. A meu espírito de matemático intrigam as chuvas de verão, que vêm sempre à mesma hora e me levam a perguntar por onde teriam andado elas entre a aparição de ontem e a de hoje.
Meu coração está pesado. Tive um alívio momentâneo quando ouvi a voz de Marco Aurélio ao telefone, a voz que vinha para me redimir da culpa que me consumia; evidentemente tinha sido um homônimo o homem que morrera. Todavia, em minha alegria, acabei por fazer girar a roda da tragédia em outra direção. Agora, Marco Aurélio estava a caminho da casa de Regininha para cobrar dela uma dívida de honra que não existia – ou talvez até existisse, mas sem ter sido eu o agente da traição. No telefone parecia violento, talvez a matasse. Talvez até já o tivesse feito e estaria, naquele exato momento, vivendo de olhos esbugalhados o choque da verdade que se apresenta aos que matam por vingança. Que todo ódio é levado pela bala ou se esvai na ponta do punhal, e que, ao final, é impossível ter diante de um cadáver qualquer outro sentimento que não a perplexidade, a dor e a repugnância.
Num impulso, lancei-me em direção à minha sala de trabalho. Fechei a porta e agarrei o telefone. Havia ainda uma chance. Era remota, mas era tudo que eu podia oferecer a Regininha e Marco Aurélio após ter, de modo tão brutal, cruzado o caminho de suas vidas. Enquanto meus dedos trêmulos discavam – por sorte o número tinha ficado na minha cabeça -, percebi um pequeno pedaço de papel deixado sobre minha mesa, destes que se usam para anotar recados telefônicos. Sobre ele, estava a letra redonda da secretária do departamento. Dr Venceslau telefonou. Pede para você telefonar de volta para ele imediatamente. Eu não tinha tempo para dedicar ao bilhete toda a importância que ele tinha para minha vida. Continuei discando.
Ouvi o tom de chamada.
– Alô – respondeu voz de homem do outro lado da linha. Respirei aliviado.
– Graças a Deus! Alô… Graças a Deus!
– Pois não.
– Escute,… eh, por favor… – minha voz tremia de forma incontrolável. – Eu gostaria de pedir ao senhor um grande favor.
– Sim?
– Será que daria para o senhor chamar uma pessoa para mim? É muito importante.
– Chamar uma pessoa? Que pessoa?
– O nome dela é Regininha, ela mora num edifício antigo logo ali dobrando a esquina, depois do ponto de ônibus.
– Olha, meu senhor, infelizmente eu estou com um pouco de pressa.
Seria eu quem estava do outro lado do aparelho? Seria este meu castigo, ter para sempre minha alma aprisionada ao telefone? O que queria comigo o Dr Venceslau? Ele disse que eu estava curado, que nunca mais precisaria voltar àquele lugar.
– Escute, por favor… eu sei que o que estou pedindo é um grande incômodo, mas…
– Aliás, para falar a verdade, eu só peguei o telefone porque estou precisando fazer uma ligação, telefone público não é para receber chamadas, é só para ligar.
– Você não entende? Está tudo acontecendo de novo – berrei.
– Se você vai gritar, eu vou desligar.
– Não, espere. Desculpe – respirei. No final do corredor, os outros funcionários gozavam seu ócio adocicado, eu podia ouvir suas vozes. Falavam sobre a tensão militar no Oriente Médio, sobre a guerra. Meu espírito de soldado romântico não se abala por crianças que enfrentam tanques com pedras na mão do outro lado do mundo; a mim angustia a questão da vontade de soltar gases intestinais quando na cama, aninhado entre os braços de meu amor, a cujos olhos eu sou perfeito. – Escute, o que estou tentando dizer é que você está tendo agora a chance que me foi dada e que eu recusei.
– Como é que é?
– Você pode estar pensando que eu sou apenas um idiota qualquer que está lhe pedindo uma grande chateação, mas há em tudo um sentido. – Do outro lado do corredor, o Azevedo devia estar bebericando seu café, fazendo aquele bico enorme para não queimar as gengivas, eu podia ouvir o som de seus beiços sorvendo o líquido fumegante. A mim não corrompe a cafeína, meu paladar puro se satisfaz com a água fresca.
– Cara, você é maluco.
Desligou.
– Há em tudo um sentido – ainda repeti para o misterioso vácuo elétrico que passou a ser meu ouvinte.
Há em tudo um sentido. Fiquei vários segundos ouvindo o tom de chamada desligada que saía do receptor. Era o riso maligno do telefone. Eu só pensava em Regininha e em Marco Aurélio.
Percebi que as vozes que vinham do final do corredor haviam morrido. Meus gritos os fizeram calar-se. Abri a porta num repente e arremessei-me pela fábrica numa corrida sufocada até ganhar as ruas e o ar livre. Continuei a correr. Cruzei vários quarteirões, atravessei ruas, sempre levantando uma onda de olhares assustados por onde passava. Os transeuntes decerto acreditavam haver em tudo um sentido. Meu peito ardia, o coração parecia prestes a estourar.
Parei em frente ao telefone. Fiquei longos instantes ali, olhando para ele e ele, para mim. Uma fraqueza enorme começou a subir por minhas pernas e tive de sentar-me no meio-fio da calçada, de costas para o aparelho. Era uma posição que me incomodava sobremaneira, sentia que ele iria se manifestar de alguma forma ao me ver de costas, derrotado e cansado.
Não me enganei. Eis, afinal, que explode o som metálico. A máquina estava me chamando. Caminho lentamente em direção ao aparelho, meu espírito de enxadrista conhece os ardis para iludir o adversário, mascarar o próprio medo.
– Alô – ouvi minha voz muito calma. Nenhuma resposta emergiu da misteriosa boca que, de algum ponto do universo, conectara-se ao meu ouvido. Em torno, as pessoas passavam indiferente ao poderoso processo que se formara e se forma toda vez que alguém atende a um telefone. – Quem é? – insisti. Meu coração começou a galopar enlouquecido na antecipação ao que estava prestes a ocorrer. Afinal, havia em tudo um sentido que ia ficando cada vez mais claro.
_ Não é ninguém – foram as palavras que saíram do plástico entre meus dedos.
O assombro fechou-se em torno de minha garganta. Era uma voz metálica assexuada, dotada de uma firmeza que só poderia provir de máquina de notável representação. Fiquei a imaginar o mundo de fantásticos circuitos eletrônicos empenhados em lhe dar vida. Os pensamentos pareciam querer escapar de minha cabeça; eu tentava segurá-los ao lugar a que, conturbado que fosse, cria que deviam permanecer.
_ Você é Deus? – gaguejei quase chorando, o assombro tornara-me criança.
Mas não houve resposta e tive medo de insistir.
E ficamos os dois ali por não sei quanto tempo, homem e máquina e ninguém mais no universo. Minha alma estava toda no ouvido, não havia nenhum outro pedaço de corpo que ela pudesse habitar, todo o resto estava sendo sugado para dentro do aparelho e transmitido a um outro mundo, onde não havia mesinha de café, nem futebol, nem jornal diário, nem firma, nem Azevedo. Um mundo onde Marco Aurélio e Regininha estavam me aguardando ansiosamente, e, alegremente, me repreenderiam por ter-me demorado tanto. Deus, por que é tão amarga minha solidão?
Um feixe de mãos caiu sobre mim e separou-me do telefone. Senti uma agulhada no braço. Tentei gritar para esperarem um pouco mais, mas não consegui.
Aplicou o haloperidol? Ainda não. Tá esperando o quê?, injeção intramuscular, dez miligramas. Ele tá se debatendo muito. Aplica treze então. Ainda tá se debatendo muito. Já vi, porra, fica calma, já vai fazer efeito. Aperta mais as correias. As pupilas dele estão muito dilatadas, tira a pressão. Cadê a ficha dele? Botei ali em cima da mesa. Traz pra cá. Segura firme o braço dele, senão como é que eu vou tirar a pressão? Pronto, ele já tá acalmando. Quando ele acordar, aplica clorpromazina vinte e cinco miligramas. Deixo ele amarrado? Não, já pode soltar. Qualquer coisa, eu tô na clínica.
Disseram-me que permaneci internado quinze dias. Eu próprio não sei dizer, o tempo dentro de uma clínica psiquiátrica não é o mesmo que corre do lado de fora. Em seu consultório, Dr Venceslau fez uma cara de contrariado: “É uma pena. Pensei que você já estivesse sob controle. Tem tomado sua medicação corretamente?” Preencheu um papel de receita, apertou minha mão e me liberou. “Juízo, hem! E vê se relaxa um pouco, não fica pensando tanto”. Ouvi atento, olhos baixos, sinalizando minha atenção e meu respeito com acenos de cabeça. Pronto, eu estava sendo devolvido novinho em folha ao mundo, como um carro recém-saído da revisão.
Minha licença médica expirou ontem, hoje já estou novamente na calçada, em minha caminhada matinal rumo ao trabalho. Angustio-me ao imaginar a recepção que lá terei, isto é, nenhuma recepção; somente a mesinha do café e as conversas.
Aproximo-me do telefone, é a primeira vez que o vejo desde que saí da clínica. Não tenho coragem de olhar para ele. Aumento o ritmo da caminhada enquanto vou passando pelo aparelho, meu coração é um minúsculo grão num peito oco.
Paro.
Olho para ele. A cúpula plástica que o cobre está mais caída que da última vez em que nos vimos. Também ele sente, também é forçado a essa realidade que rejeita. Por um momento, senti que ele tocaria para mim, mas nada acontece. Droga! Estou pensando demais outra vez. Vamos ao Azevedo