Maurício era um adolescente como qualquer outro: boa-pinta, sorriso pontual, craque em Física e Matemática tanto quanto na linha de passe, namorada a tiracolo (bonitinha, por sinal). Mas ninguém foge ao destino, e, na cidade onde morava, o banditismo desenfreado vinha transformando em tragédia o destino de várias pessoas. Uma noite voltavam Maurício e o pai, de visita ao tio paterno do rapaz. Parados no sinal (não era tarde, senão avançariam), pneus dianteiros sobre a faixa de pedestres meio apagada, de súbito surge sorrateira à janela do motorista sinistra figura apontando o revólver:
– Passa a pochete aí senão leva fogo!
De fato, a pochete – com dois ou três cartões de crédito, cartão de Banco 24 Horas, talão de cheques – dava bobeira sob o pára-brisas do automóvel, visível do lado de fora, verdadeiro chamariz para assaltantes. Na calçada, um ou outro transeunte ou mesmo porteiro; à direita e atrás, dois outros automóveis também aguardavam o sinal abrir. Será que ninguém via que estavam sendo assaltados? Se viam, por que não faziam nada? Que sociedade era aquela, onde ninguém mais reagia a coisa nenhuma? Em outros tempos, heróis encaravam ditaduras, alistavam-se como voluntários da pátria, erguiam barricadas, derrubavam sistemas. Mas agora… O assaltante também não seria bobo de dar um tiro com tanta gente, tantos carros ainda na rua – tudo isso passava pelo cérebro rápido no gatilho do pai de Maurício. Com a agilidade de piloto de Fórmula 1, engrenou a primeira e arrancou. O assaltante, fugitivo da penitenciária, trazendo no passivo duas décadas de pena ainda por cumprir, enchera a caveira de droga barra-pesada e nada tinha a perder. Atirou e deu no pé – como que se desmaterializou. Para onde foi, ninguém sabe, ninguém viu. A bala atingiu de raspão a têmpora direita de Maurício pai e perfurou o crânio de Maurício filho, tangenciando-lhe o cérebro.
Dois longos meses oscilou Maurício entre a vida e a morte. Várias vezes chegou a percorrer o túnel caleidoscópico que conduz ao outro lado, ao além. A inconsciência de Maurício vez ou outra foi interrompida por visões: rodas de fogo, dragões, flagelos. Certa madrugada, Maurício foi visitado pelo Arcanjo Gabriel, espada refulgente. Clangor de trombeta. Vinha anunciar a boa nova:
– Maurício, ouça-me! Nada é por acaso. O que tem de acontecer tem muita força. Seu destino está traçado. Dedicará a vida ao serviço de Deus. Seu povo está cativo. Ninguém reage, nem minha apostólica Igreja. Súcubos malignos o tentarão. Resista! Com esta espada vencerás! – entregou a espada na mão de Maurício.
Dia seguinte, o painel de controle de terapia intensiva registrou grande melhora nos sinais vitais de Maurício. À mãe, sempre presente à cabeceira, balbuciou as primeiras palavras após o acidente.
– Mamãe.
Dona Lurdes creditou a melhora súbita a milagre de Nossa Senhora, de quem era devota e a quem orava sem parar pelo restabelecimento do filho.
Decorrida outra semana, Maurício retornava ao lar. Não obstante o impacto da bala, não sofrera lesão cerebral. Naquela mesma noite, Maurício reuniu a família para dar a notícia:
– Decidi não estudar mais Engenharia.
– Como não? – perguntou o pai, sobressaltado. Prometi até te dar um carro zero quando você passar no vestibular.
– Pai, mãe, nada é por acaso.
– Como nada é por acaso? Se por acaso eu tivesse entregue a pochete… – replicou o pai, que não se perdoava o gesto temerário que resultara na tragédia.
– Pai, mãe, amo vocês dois, mas o que tem de acontecer tem muita força. No hospital, decidi: vou entrar no seminário.
Raio que se precipitasse de céu azul de brigadeiro não causaria mais impacto do que a inesperada comunicação de Maurício. Os amigos tentaram demovê-lo da decisão; um deles chegou a insinuar que “seminário é coisa de boiola”; a namorada caiu em choro histérico, sabedora de que o perderia para um rival que, tão abstrato e distante, para todos os fins práticos era como se não existisse. Antes o perdesse para alguma atriz de beleza invulgar, isso faria mais sentido.
Maurício revelou-se seminarista brilhante, dominou o Latim, a Teologia, a doutrina com a mesma facilidade com que outrora esgrimia o Inglês, a Física, a gramática normativa. Como prognosticado pelo anjo visitador, súcubos de formas insinuantes vieram perturbar a castidade de Maurício, invadindo-lhe o sono em sonhos lúbricos – a carne é fraca. Mas logo Maurício descobriu que todo desejo – seja de sexo, droga, cigarro – segue a mesma lógica e que a abstinência prolongada acaba por debelar o fogo e, enfim, uma a uma, cada brasa remanescente.
Ordenado padre, poderia ter se aboletado em confortável casa paroquial de bairro da Zona Sul ou de aprazível cidade do interior fluminense. Mas não. Voz interior, eco do anúncio do arcanjo, bradava: “Seu povo está cativo.”
Fiel ao voto de pobreza, Maurício optou pelo trabalho na Pastoral das Favelas. Ainda mais: fez questão de residir ali, em meio ao povo cativo. Aos superiores, não agradou muito a idéia, mas o Espírito Santo dotara Maurício de poder de persuasão irresistível. A paróquia adquiriu barraco para moradia de Maurício. Ironia das ironias: a Igreja Católica, proprietária de terras, templos, prédios inteiros no centro da cidade, contabilizava agora, entre seu patrimônio, reles barraco – anúncio de volta às origens?
Na favela, não menos que no asfalto, imperava o poder econômico (aqui, o poder do tráfico de drogas). Amar a Deus sobre todas as coisas. Em nome de Deus, toda sorte de pregador induzia fiéis a contribuírem com dízimos escorchantes. Não tomar o seu santo nome em vão. Nos domingos e dias santos, já não se ia à missa, mas ao boteco, ao baile funk. Guardar domingos e festas. Crianças e adolescentes alistavam-se nas fileiras do tráfico e não davam ouvidos aos bons conselhos dos pais. Honrar pai e mãe. A vida humana valia tanto quanto a de uma formiga, e o chefe do tráfico tinha poder de vida ou morte sobre a população favelada. Não matar. No labirinto de vielas, ninguém era de ninguém, e meninas púberes iniciavam prematuramente a vida sexual, muitas chegando a engravidar. Não pecar contra a castidade. Como demonstração de poderio, o tráfico organizava bondes do mal, comboios de bandidos fortemente armados que saíam pelo asfalto a fim de “barbarizar”, assaltar. Não roubar. A polícia, de modo a engrossar as estatísticas da repressão ao crime, sem realmente reprimi-lo – já que sua maior fonte de renda era a extorsão aos traficantes – forjava falsos flagrantes contra a população da favela. Não levantar falso testemunho. Quando a mulher de Juca Pedreiro subia a escadaria rebolando as ancas bem-fornidas, dezenas de pares de cúpidos olhos masculinos acompanhavam-lhe trajeto e trejeitos. Não desejar a mulher do próximo. Nos bailes funk, quem podia ostentava tênis e camiseta de griffe pra impressionar as gatas; quem não podia, ficava na inveja. Não cobiçar as coisas alheias.
Padre Maurício entrosou-se com a associação de moradores da favela e deflagrou campanha pela ampliação da creche comunitária, construção de quadras de esportes e instalação de cursos técnicos e de informática.
Contatou empresários do círculo do pai e obteve apoio financeiro para suas obras. Com seu carisma, padre Maurício atraiu o foco da grande imprensa, da TV. Com o poder de persuasão inspirado pelo Espírito Santo, padre Maurício trouxe a seu aprisco ovelhas negras que haviam sido arrebanhadas pelo tráfico. Valendo-se da notoriedade recém-adquirida, negociou com a prefeitura a urbanização da favela. Nos sermões, citava amiúde os dez mandamentos, a lei de Deus, que se sobrepõe à lei dos homens.
Quem não andava nada satisfeito com a história era o chefe do tráfico de drogas: a atividade do padre vinha desfalcando-o de “soldados”, e toda aquela movimentação em torno do padre estava prejudicando os “negócios”, espantando fregueses, temerosos de serem flagrados pelas câmeras da mídia sempre a postos. Certa manhã, batida agourenta à porta interrompe as orações do padre.
– Quem é?
– Chico Terror.
A favela onde padre Maurício atuava tornara-se importante reduto do tráfico devido à localização estratégica: saída para três bairros diferentes da Zona Sul carioca, facilitando vendas e fugas. Chico Terror assumira a direção do tráfico local após bem-sucedida invasão da favela pelo Terceiro Comando, certa madrugada de lua nova. Achavam-se sob seu comando quarenta soldados armados até os dentes de fuzis e pistolas, inclusive armas privativas das Forças Armadas, e treinados por ex-militar em técnicas de guerrilha urbana, camuflagem, evasão, resistência à tortura e invasão de delegacias para resgatar companheiros. O paiol de armas de guerra e explosivos do “movimento”, em poder de algum desses movimentos fundamentalistas islâmicos que pululam pela Ásia, daria para deflagrar um movimento separatista. Os bem-abastecidos depósitos de maconha e cocaína e toda a rede de suprimento – da plantação de coca na Bolívia ou de cânhamo no Nordeste, na extremidade inicial, aos alegres consumidores da própria favela ou do asfalto lá em baixo na extremidade final – constituíam modelo de logística digno de ser enfocado pelos cursos de Administração de Empresas (ainda mais por se tratarem de substâncias ilegais, sujeitas a todo tipo de restrição).
– Seu Chico, no meu barraco só entra gente desarmada.
– Não costumo obedecer ordem de ninguém, seu padre… Mas vá lá.
Chico entrega a arma ao capanga. Adentra o barraco do padre, passada agourenta. Boné sobre cabelos raspados, camiseta de time de futebol, constituição bem mais franzina do que se esperaria de bandido de tamanha periculosidade.
– Padre, vamos direto ao assunto. Sua atividade está atrapalhando o movimento.
– Sou humilde servo de Deus e só estou trazendo o Evangelho ao povo da favela.
– Padre, Deus pode mandar lá no céu ou mesmo no asfalto, mas aqui na favela quem manda sou eu.
– Chico, todo poder terrestre é ilusório. No final, você vai descobrir que o poder de Deus é superior.
– Veremos – responde Chico laconicamente, enquanto abandona o barraco do padre, cuspindo fogo. Padre Maurício teria de ser eliminado.
Chico não brinca em serviço e, no dia seguinte, ordena o atentado. O padre subia escadaria para ministrar os sacramentos a certo doente. Espouca tiro surdo vindo ninguém sabe de onde. O padre tomba no solo como fardo. Alguma boa alma chama a polícia. O padre é levado com vida ao hospital.
Duas semanas durou a coma do padre. O atentado a um sacerdote católico, um escândalo. Jornais e TV cobriram com destaque o crime. O alto clero da Igreja mobilizou-se e pressionou as autoridades. A notícia transpôs as fronteiras. Foi matéria da Time norte-americana, da Spiegel alemã. Na missa dominical, o Papa se referiu ao atentado e aos “nossos irmãos favelados do Rio de Janeiro cativos de quadrilhas de traficantes”. As pressões internacionais se intensificaram. Documento conjunto dos chefes de Estado da CEE, com apoio do Presidente norte-americano, exigiu do governo brasileiro ações enérgicas contra o crime organizado.
Restabelecido do atentado, o retorno de padre Maurício foi apoteótico: o morro se engalanou para recebê-lo de volta. Antes, o padre fez questão de uma visita. A Chico Terror, agora trancafiado em penitenciária de segurança máxima. Depois do atentado, o morro fora ocupado pelas forças de segurança. A quadrilha, desmantelada. As ligações entre o tráfico e polícia, autoridades, juízes, deputados, rastreadas. As provas recolhidas contra Chico Terror faziam prever longa pena de prisão, talvez vida atrás das grades.
Chico Terror surpreende-se com a visita do padre. Ajoelha-se, contrito, beija-lhe a mão:
– Padre, perdoa-me.
– Só a Deus é dado perdoar.
– O senhor não me odeia? Mandei matá-lo.
– Não sinto ódio, mas pena. Leia o Evangelho e compreenderá.
O resto da história ainda aguarda no futuro, não nos é dado desvendar. Tenho a impressão que padre Maurício, empunhando a espada refulgente recebida do anjo Gabriel, e com a coragem dos primeiros cristãos que arrostaram leões e o Império Romano, não esmorecerá na peleja contra toda sorte de opressor.