Padre Alberico

Na minha juventude havia dois comportamentos que significam o máximo de anarquia para a comunidade piumhiense: roubar galinha para fazer uma galinhada, e depois ir nadar no tanque da praça da Matriz.Naqueles anos dourados da década de 60, onde se confiava no ³fio de bigode², ³amarrava cachorro com lingüiça² esta liberdade inocente, era bastante criticada, tendo as mães o cuidado de evitar que suas filhas namorassem quem praticasse tais atos. E ocasionalmente, as sextas feiras, quando a vida não sugeria nada para se fazer, um grupo de adolescentes, cada um, após despedir da namorada dirigia se para o nosso ponto de encontro. E no momento da despedida, a namorada já pedia carinhosamente: bem não vai juntar com aquela turma e roubar galinha …..
E as pessoas, iam chegando no nosso clube do Bolinha, ou seja, as escadarias do antigo Bar do Ponto, cruzamento das ruas marechal Deodoro com Benedito Valadares, a famosa Esquina dos Aflitos, onde reuníamos para sentirmos amigos e falar dos nossos sonhos, dificuldades etc…. E de repente a idéia era colocada Vamos roubar galinha? E o grupo composto de crianças como o Alessandro, Toró, Marco Túlio e Julio César do Vinicius, Rômulo da Dona Sussu, Augusto da Menina, Humberto da Umes, Menininho da Terezinha, Agostinho, Toninho do Feio partiam para a marginalidade noturna. A partir deste momento, passávamos a ser, o preconceito da época. Levávamos um violão para simular uma serenata, sendo executada primeiramente a musica solo ³O Milionário, e logo em seguida o Toró entrava cantando Renato e seus Blues Caps ou Roberto Carlos. Enquanto isso, alguns meninos-gato pulavam o muro e com habilidade chegavam ao galinheiro. O difícil era fazer, sem alarde, com que as galinhas tirassem os pés do poleiro, e os apoiassem nos dedos da mão dos gatunos. E geralmente, esta operação era feita no quintal do Padre Alberico, porque estávamos bem no fundo da horta, longe do sono profundo do Padre.A serenata terminava com a musica ³Coração de papel², sinalizando que já estava na hora de dar no pé. As galinhas não eram preparadas com muito cuidado,pois o que mais importava era a diversão. Geralmente eram galinhas borrachas, pois não sabíamos que tinham que ser refogadas antes do inicio do cozimento. E a farra entrava noite adentro só terminando na manhã do outro dia. Nesta hora, descíamos para nadar no tanque da praça da Matriz. E o horário coincidia com a missa das sete e encontrávamos com as viúvas, pessoas de boa fé, carolas indo rezar. À medida que éramos vistos, o comentário era um só: aquele ali é filho da fulana, aquele é filho da cicrana… E a moral dos farristas, no outro dia era zero. Certa ocasião, após termos visitado o galinheiro do padre Alberico e termos feitos uma farra noite adentro, estávamos sentados na esquina dos aflitos, curando aquela tremenda ressaca.De repente vimos o Padre Alberico saindo do Banco Mercantil. De inicio pensamos em dar o fora, mas já era tarde. Ele vinha em nossa direção com passadas firmes e largas. A noticia da galinhada da noite anterior já havia espalhado pela cidade, e o Padre já sabia dos fatos. Naquele momento, não tínhamos como evitar o encontro, e a melhor alternativa seria ficar quieto para tentarmos passar despercebidos. Mas Padre Alberico chegou no grupo, cumprimentou um por um e puxou conversa. Perguntou sobre estudos, sobre namoradas, sobre responsabilidades, e calmamente entrou no assunto sobre liberdade. Comentou sobre comportamento das novas gerações, hábitos e costumes sendo alterados, e finalmente concluiu sobre a juventude e a chegada de novos tempos. Depois se despediu de todos e saiu andando devagar com um sorriso maroto. Todo o grupo ficou espantado, pois esperava tomar uma bronca daquelas… Neste momento fiquei observando o homem se distanciando, analisando sua capacidade de rezar uma missa pela manhã e confortar os mais velhos, os crentes, os desiludidos, alimentar o espírito dos que tinham boa fé. Também, a capacidade de usar sua personalidade férrea, negociando direitos, tentando impor igualdade nas questões em que participava, levando as ultimas conseqüências o seu ponto de vista. E naquele momento, no seu encontro com jovens, a habilidade de entender o comportamento de uma nova geração. Senti-me pequeno, provinciano como todos aqueles que adoravam criticar comportamentos, e limitado pelos meus próprios princípios de liberdade.Pela sua vida eclesiástica, provavelmente Padre Alberico nunca viveu bagunças desta natureza. Mas, o que as pessoas faziam, mesmo sendo completamente diferente de suas próprias experiências, ele aprovava ou reprovava, dependendo dos fatores de aproximação dos seus exatos valores de personalidade. E hoje, quando relembro deste fato, e não o vejo mais entre nós, entendo porque ele era um homem de Deus. Pela sua capacidade de briga, pela sua capacidade de vislumbrar o mundo e entender pessoas e situações E deve ter partido mais cedo, para ser preservado de viver vida afora e ir arraigando princípios imutáveis.Isto o tornaria velho.Pois, pelo menos posso entender que sua visão ampla da vida era muito maior que a de todos os jovens que estavam sentados na esquina dos aflitos….. em 1968….