Claro que não presenciei este acontecido. Só vim a nascer muito tempo depois. Na realidade, apenas quatro de nós (os quatro mais velhos) poderiam ter-lhe alguma lembrança real. Existe, no entanto, a tradição oral, um dos mais antigos e persistentes meios de transmissão da cultura por muitas e muitas gerações. Viva pois a tradição oral, pela qual permito-me viajar no tempo até aquela noite tão especial! É justo que eu declare também que, neste caso específico, o Guido foi o agente que fez com que a história chegasse até mim.
Naquele tempo, o Zé Maria ainda era pequeninho, mas já andava. Portanto, teria algo mais do que um ano de idade.
Após mais um extenuante dia de cuidar da casa e dos filhos – já eram cinco, então – Mamãe, com o carinho que a gente tanto apreciava, tomou o Zé nos braços, deu-lhe um reconfortante banho morno e levou-o para o quarto de dormir. Cuidadosamente enxugou-lhe todas as dobrinhas da pele para que não sofressem nenhum tipo de irritação, examinou-o detidamente, já que saúde era uma das suas grandes preocupações, ouvinte atenta que era dos conselhos do Dr. Melo Teixeira, com certeza um admirável pediatra (será que já existiam pediatras, naquele tempo de partos caseiros?).
Pois bem, Dr. Melo Teixeira (e, em consequência, Mamãe) não era de ficar fechando janelas e abafando o ar dentro da casa. Assim, por muitas vezes a vimos abrir amplamente as janelas da casa, mesmo em noites mais ou menos frias, dizendo: – Ar! Quero ar puro!
E os banhos frios de mangueira, no quintal de casa, em tardes quentes? E a exposição à chuva torrencial das tempestades de verão, que ela incentivava? Na nossa casa da Floresta os amplos telhados sem calhas proporcionavam cortinas de água de dar gosto, onde a gente se esbaldava! Tudo sob o olhar divertido e atento de Mamãe. Ela contava que, quando era menina, gostava de correr de braços abertos quando soprava aquele vento forte bem antes de o céu desabar em dilúvio…
Então: como tudo estava em ordem com o Zé Maria, Mamãe vestiu-lhe cuidadosamente o pijama. Ela tinha o hábito de, nestes momentos, deixar também sua alma vagar por paragens distantes, e assim suspirava e pensava em voz baixa mas perfeitamente audível, enquanto cuidava de um filho.
Vestido o Zé, eis que ele despenca no colchão, de forma inesperada. Ela tornou a colocá-lo de pé e, de novo, o Zé caiu. Decididamente não estava conseguindo se equilibrar. Mamãe ficou apavorada. Num esforço, juntou sua aflição e sua sabedoria da saúde dos filhos, e pré-diagnosticou: o Zé estava com problemas motores – poderia ser o início de uma paralisia infantil, mal terrível que afetou tantas crianças e afligiu tantas famílias ao longo dos anos!
Chamou a Maria Amélia, disse-lhe para avisar Papai que era necessário levar o Zé imediatamente ao médico.
Papai estava calmamente estendido em sua espreguiçadeira, ao fim de mais um dia de trabalho, esperando a noite se fazer alta enquanto ouvia histórias e músicas pelo rádio. Alertado pela Maria Amélia, Papai se levantou em sobressalto, vestiu um terno, apertou o nó da gravata (sim, naquele tempo não se deixava por menos: paletó e gravata eram itens indispensáveis em qualquer ida a lugares onde houvesse um mínimo de austeridade – um hospital, por exemplo), foi para a garagem, deu partida no carro e saiu para a rua.
E toca a esperar, motor e coração acelerados, porque doença de filhos é uma das coisas mais angustiantes que mães e pais podem experimentar.
Eis então que Maria Amélia surgiu no alpendre da casa e fez uns sinais negativos para Papai – não, não era necessário mais levar o Zé ao médico, estava tudo bem. Intrigado, ele guardou novamente o carro e foi para dentro verificar o final da tragédia.
Encontrou Mamãe no quarto se sacudindo de tanto rir, entendeu menos ainda.
– Melica, o que aconteceu? Como é que está o José Maria?
A muito custo, Mamãe conseguiu parar de rir, e explicou:
– O José está muito bem, graças a Deus! Eu é que me distraí e, quando lhe vesti a calça do pijama, enfiei as duas pernas dele numa única da calça!
Papai raspou a garganta, pensou em dar um pito em Mamãe. Pito, naqueles anos, era uma descompostura, uma bronca. O alívio da aflição que experimentara, no entanto, era muito, muitas vezes maior do que qualquer irritação. Assim, ele despiu o terno e a gravata, tornou a vestir seu pijama predileto e voltou para a espreguiçadeira e o rádio. No máximo, conseguiu dizer entre aliviado e divertido:
– Melica, você não tem mesmo jeito!…