Soube que era ela, a velha que vendia maçãs envenenadas. Embora disfarçada de velho vendedor de maçãs do amor não velha vendedora de frutas, aqueles olhos de peixe e criança, de peixe-criança, criança-peixe não enganavam. Eu que busco a Luz no túnel, que nunca tive Mãe nem piedade, que para me prenderem à noite no pé da cama contavam histórias João e Maria , João e o pé-de-feijão, João Sem-Terra, Johnny Quest, sem saber que assim abriam a porta para eu entrar e nunca mais sair, logo reconheci a personagem de um tempo que nunca acabou.
Confesso, mais tarde, fingindo nada ter a ver com isto, assinei manifesto contra a influência nociva dos meios de comunicação na formação das crianças. E o velho que vendia maçã do amor ? Apesar dos olhos líquidos e bondosos, tinha a pele enrugada, voz áspera, revelando o mal. O mal do tempo. Antes que oferecesse as maçãs e eu tivesse medo de dizer não, queria acordar, me debati entre os lençóis, entrar em outra, não concordo com tuas palavras, mas defenderei até a morte o direito de desdizê-las, será que você nunca vai parar de crescer ?, tire suas mãos de mim, a mão está suja. O velho continuou lá, sorrindo como bobo no parque de diversões, oferecendo maçãs cheias de agrotóxico, cobertas de calda açucarada que mais tarde tanto alegraria meu dentista. Sabias que eu era fraca?, meu pai lenhador que vendia sorvete na rua sabia, já tinha sido envenenada desde o berço. Nada fez para eu deixar de ser seduzida e levada ao sono profundo, ao contrário, para dormir mais rápido, cantava, quando você for se embora, me leve, quando você se for, que a cor do arco-íris não se apague, porque eu, minha filha, só tenho fome. O velho oferecia maçãs do amor e meu pai comprou, tudo que eu mais queria na festa era comer as maçãs, o vermelho ofegando na doçura aparvalhada.
Lembro a alegria de ter a maçã a boneca de plástico o passeio no carrossel antes que tudo passasse num sonho, uma vida passada, ruído da freada sobre o carrinho caído na calçada. Lembro a gargalhada de meu pai assombrando o vendedor de maçãs porque comprava a felicidade barato na vida sem sonhos. Lembro não ter conseguido acordar antes que o caminhão passasse em cima do carrinho de sorvete. Lembro ter sentido o asfalto derretendo o gelo das frutas o coração sem voz o grito abrindo a porta correndo. E lembro nunca mais ter voltado ao parque de diversões. Nem ter ouvido falar nem visto mais a velha disfarçada de velho que vendia maçã de amor.