Menina Gorda

Não acredito que ela e Botero alguma vez se tenham encontrado.
Países diferentes, sociedades distantes. Não, impossível. Mas que teria sido um modelo perfeito para o artista, não restam duvidas.
Gorda, imensamente gorda. Olhar misto de tranquilidade e angústia. Lábios estreitos. As maçãs do rosto grandes, redondas, rosadas, gordas também.
O seu corpo gordo e a sua alma de magra nunca se entenderam lá muito bem.
Um conflito insanável que a acompanhava desde que, nas aulas das primeiras letras, se deu conta que o espaço que ocupava era muito maior do que o que estava reservado para os seus coleguinhas. Assim na proporção de dois para um.
E como ela se encolhia!!!. Mas não dava. Ou quase não dava. A sua melhor amiga, figurinha delgada, fazia prodígios para se equilibrar no reduzido espaço que sobrava na carteira.
E, como se não bastasse ser gorda, era canhota também.
De cada vez que levantava o braço para mostrar que sabia todas as respostas, e ela sempre sabia as respostas, todas, lá caía a amiga no chão, projectada por aquela demonstração de sapiência.
Estranho que lhe chamassem gorda. Ela sentia que não era gorda.
Os gordos, quase por definição, são pessoas bem dispostas, alegres. Bastava ver as tias e a mãe, divertidíssimas criaturas, de longas gargalhadas ante a mais inocente anedota, trocando piadas por entre as compotas, o tricot e as telenovelas. Felizes.
Ela não.
Tinha profundas crises de tristeza, de angústia olheirenta. Assaltava-a a cada passo a melancolia.
Não, não era gorda.
A sua alma de magra funcionava como um filtro.
Quando se olhava no espelho, era a alma que lhe surgia reflectida, elegante, longilínea.
Quando contemplava uma paisagem, um sol poente sobre o mar, sentia a melancolia invadi-la. E é sabido que só os magros se deixam invadir por esse sentimento agridoce da melancolia.
E adorava os nocturnos doloridos e as apaixonadas polonaises de Chopin. E Chopin era magro. E George Sand também.
Aplicada, trabalhadora, atravessou o curso de direito como um furacão.
Das suas actividades extracurriculares não constava nem uma paixoneta breve. Embora se suspeitasse que alimentou uma admiração distante e recatada por um colega do quarto ano, reconhecidamente de boas famílias, e magro. Suspeitas que se desvaneceram por inteiro quando ela ingressou, triunfante, no último ano do curso e ele ficou, uma vez mais, hesitante entre as longas noites de bridge, política e whiskies velhos, e os terríveis calhamaços de direito administrativo.
Primeira classificada do curso, elogiada pelos sisudos mestres de direito, não lhe foi difícil entrar como advogada estagiária num dos melhores escritórios de advogados.
E, como o coração permanecia livre de compromisso sentimentais, embora já lhe tivesse provocado alguns sustos como órgão funcional, todo o seu tempo era dedicado às questão jurídicas que lhe eram distribuídas.
Sábados e domingos, feriados e dias santos, eram passados naquele complexo de quinze andares. Do primeiro ao quarto, arquitectos; o sexto andar todo ocupado pela clinica de recuperação estética. Do sétimo ao décimo, médicos de renome. E, do décimo primeiro ao décimo quinto, as diversas firmas de advogados reinavam, incontestadas, sobre a cidade.
Adorava ficar na sua sala de trabalho até bem tarde. Raro era o dia em que apagava a luz da escrivaninha antes das nove horas da noite.
O silêncio que respirava, contrastando com o turbilhão do trânsito, treze andares mais abaixo, dava-lhe a tranquilidade necessária para rebuscar pareceres, analisar sentenças, fundamentar, sem margem para um réplica consistente, todas as suas defesas, todas as suas acusações.
Não fora em vão a confiança que nela tinham depositado
Todas as noites o responsável pela segurança do edifício batia levemente na porta e implorava:
“Doutora, são horas…”
“Um minutinho só, senhor Aniceto…” Olhava o relógio:21h30. Como era tarde….retirava do leitor de cd’s o nocturno em fá maior, quase uma valsa transformada em tempestade triste, empilhava os dossiers, desligava o computador, olhava em volta verificando, meticulosa, que tudo estava em ordem, pegava na pasta onde os papéis asfixiavam por falta de espaço, fechava a porta e dirigia-se para o elevador acompanhada pelo segurança.
Tinha medo, um medo inconfessado, de entrar no elevador. A rápida viagem descendente até ao parque, na cave, onde o velho e espaçoso Ford a esperava, paciente, era terrível. Uns segundos que lhe pareciam séculos.
O senhor Aniceto ficou preocupado. Que maçada. Logo naquele sábado de chuva havia de acontecer a falha de energia. Há mais de meia hora.
E a doutorinha (era assim que lhe chamava, com carinho)??
Felizmente que o elevador tinha chegado ao parque no preciso momento em que a electricidade falhou. Coitada, tão boa pessoa, tão gorda e tão receosa de andar de elevador. Sempre lhe pedia para ficar por perto, certificando-se que chegava lá em baixo sã e salva.
Ficara especado em frente do elevador e , no preciso momento em que o sinal -1 acendeu, aí a energia falhou.
Por fim a corrente foi restabelecida. Mas a luz do -1 continuava acesa. Alguma coisa não estava a funcionar.
Correu para o elevador nº2 e desceu até ao parque.
De borco, com metade do corpo já no cimento frio do parque, o corpo da doutorinha jazia, sem dar acordo.
O pronto-socorro não demorou a chegar.
Tentaram tudo, tudo. Mas ela não reagiu. Ataque cardíaco, fulminante.
Cabisbaixo, o senhor Aniceto arrumava os papéis que haviam caído da pasta da doutorinha. A um canto, uma pequena brochura colorida anunciava “COMO EMAGRECER EM TRINTA DIAS”.
Num museu distante, alguém notou que o olhar da mulher gorda no quadro de Botero, misto de tranquilidade e angústia, brilhava de uma forma estranha, como se tivesse chorado.