Visões do Inferno

Manhã de sábado. Cedo demais para que qualquer mortal, em sã inconsciência, cogite a possibilidade de abrir os olhos ou sair da cama confortável que o acolheu a noite inteira. Cama que é quase uma extensão de si, conhece o formato do seu corpo, as curvas, saliências e reentrâncias. Que absorve seus cheiros e os confunde com o perfume dos lençóis macios. E embala os sonhos, ardentes ou cálidos, com a mesma complacência amortecida de sentidos de sempre.
Ah, tranqüilidade semi-adormecida do amanhecer, quando os pássaros cantam na janela e, através dela, os primeiros raios de sol acariciam a pele e conv…
– AÊÊÊÊÊÊ… EÔÔÔÔÔ… LERÊÊÊÊÊ… ÔÔÔÔÔÔ…
O pobre mortal, agora totalmente consciente, cai de bruços contra as tábuas duríssimas do assoalho. Desgraçado do cunhado! Só uma criatura como ele poderia levantar as sete da manha de um sábado para ouvir axé-music a todo volume. Volta para a cama, mortificado, na tentativa de ao menos realinhar os batimentos cardíacos, antes de levantar e ir até à sala aplaudir a iniciativa do amantíssimo componente familiar, herdado a contragosto com o casamento e sem possibilidades de desistência. Então o queridinho começa a dançar e cantar, chacoalhando as paredes da casa de madeira.
“Filho de uma puta”, pensa o mortal, enquanto enterra a cabeça nos travesseiros. Opa… a mãe do sujeito, sua sogra, uma puta? Então a filha, a mulher que dorme tranqüila ao seu lado na cama e com quem casou há cinco anos… traidora! Com o cano do revolver enfiado na boca, num desespero ignorante, finalmente entende as saias curtas e o rebolado de parar o transito daquela safada. Deve ter dado para a cidade inteira, pensa, quando puxa o gatilho, achando essa historia tremendamente estúpida e sem sentido.

II
A casa cheia de parentes parece uma tentativa de reunir os ramos vivos da árvore genealógica sob o mesmo teto, em um único encontro. Um olhar panorâmico revela gente na cozinha, quartos, banheiro, sala, quintal. Três ou quatro tomam café, um bando de crianças entre dois e sete anos corre pela casa atrás do cachorro, que persegue o gato aos latidos. O casal de primos adolescentes troca beijos e apalpadelas, protegido pela samambaia gigante da varanda. Alguém colocou a tocar musica de trinta anos atrás e que ninguém mais agüenta mas também não interrompe. Em outro cômodo, a TV ligada a um bom volume para que seja possível assistir ao programa de auditório que distribui prêmios em dinheiro a quem acerta as perguntas.
Some-se a isso o calor insuportável do verão sul-americano. Janelas e portas abertas são proibidas; ligar o condicionador de ar, nem sob tortura: o reumatismo do avô se manifesta na hora.
Chega a hora do almoço e é aquela festa. Macarronada ao sugo, uma confusão generalizada de molho espirrado para todos os lados enquanto é sugado ruidosamente (ah, por isso chama-se “ao sugo”), com o macarrão, pelas bocas famintas. Alguém vira um copo de vinho tinto na toalha branca e acha bonito o desenho que o liquido faz. A avó aproveita para limpar, com discrição, no canto da toalha, a meleca que tirou do nariz. O tio balofo arrota e reclama, às gargalhadas, que a culpa foi do excesso de alho no molho e que tomate lhe dá gases.
Prenuncio do fim dos tempos? Não. Apenas uma pacata família reunida para o almoço num relaxante feriado…

III
Uma vez a cada vinte dias é feita a seleção dos novos membros no inferno. O diabo-auxiliar vem saltando fogueiras e driblando labaredas esparsas para chegar a tempo. Cacoete antigo, dos tempos de Alice esse correr esbaforido e afogueado, com o eterno “estou atrasado!”.
– Chefe! Chefe!
– Fala, Diabo…
– Temos apenas uma hora para selecionar e trazer os novos membros para baixo. Desta vez é um grupo de políticos e fanáticos. Temos uma boa quantidade deles à espera, no limbo. Ouvi dizer que alguns acham que estão lá se purificando para entrar no céu, não é hilariante, chefe?
– Ora, deixe-os sonhar um pouco… Depois vão estar ocupados demais para isso…
– Certo, chefe. Aqui está a lista completa. São duzentos ao todo. O senhor escolhe que o resto eu providencio.
– Muito bem. Vamos arrebanhar só cinqüenta. Nada como uma boa temporada no limbo para clarear as idéias. Anote aí: dois democratas e dois republicanos; um israelense e dois palestinos; dois socialistas e os seis comunistas; um estalinista; dois anarquistas; ah, claro… os quinze nazistas, todos juntos; dois líderes do MST; dois deputados federais da esquerda brasileira e dois da direita; três neoliberais; oito lideres de seitas proibidas.
– Já temos o grupo completo, senhor.
– Ótimo. Estou mesmo ficando cansado de brincar de Noé. Agora, faça a sua parte.
– Acondiciono-os por sala, em grupos de cinco, como nas últimas vezes?
– Ficou louco? Desse jeito vão começar a exigir regalias, subdividir-se conforme os interesses, criar facções. Nunca. Alem disso, estamos com superlotação. Coloque-os todos juntos numa sala com capacidade para cinco pessoas. Depois de dar-lhes as boas-vindas, ordene que escolham um representante oficial.