A Noiva do Vento

A chuva lavara as pegadas do jaguar, mas a mata registrara seu hálito quente. O vento conduzira o suor da terra através dos cipoais e heras em flor, de volta ao céu. A batalha deixara apenas indignação lavada de sangue. Rio de sentimentos extremos. Correntes revoltas de ódio. Adiante, o afluente do amor esperava para exigir dos mortais reflexões sobre suas prioridades e métodos.
Com nome de flor num tempo e terra de gente homem, a jovem líder dos camponeses entrava em transe. Em meio à clareira subia ao topo da pedra nua. Quase vestal. Noiva do vento, aceitava-lhe as carícias enquanto os urros dum felino decifravam códigos e planos transferindo-os à sua memória. Estratégias do Monge morto, líder antes dela, a quem seguira como discípula vencendo o preconceito ainda tão farto no alvorecer do século XX.
Voltava a si com o tinir das lâminas forjadas a fogo no interior dos paióis ou das cavernas. O corpo a corpo reduzindo os esquadrões locais. Seus camponeses, seus soldados. Lutavam por instinto num exército de celenterados. Vagavam pelas trilhas com o grito da resistência servindo de guia. Esperança como escudo. Subiam elevações. Abriam picadas na mata suportando a sanha dos insetos, a peçonha das cobras – répteis e humanas ­ sob o sol ou tempestade. Rodeados de espinhos das unhas-de- gato ou expostos à planura dos campos. Suportavam.
A jovem com nome de flor reunia seu bando transferindo a mensagem espiritual do Monge. Viera na língua do vento, escrita pelo hálito do jaguar nos seus pensamentos. Usando os dados, compunham táticas.
Em noite de lua cheia não se dá um passo!
Porque a lua cheia acende os espiões na boca dos esconderijos. Dá olhos à soldadesca mouca que aprende a trilha,percebe o limo, o laço das armadilhas. E estaria perdida a vantagem de conhecer a palmo cada pedra no descampado, ou cada penhasco que a ramagem camuflava com suas veias líquidas. Aqueles projéteis de fogo dos opositores, não davam tempo para o desvio. Tinham braço mais longo do que o facão, a espada ou a lança. Exigiam mais astúcia. Exigiam mais que fidelidade às ordens estratégicas. Seu diferencial, a fé.
Estavam combinados. Estavam eufóricos! Vinham de um êxito recente. Bastava tempo e paciência. Venceriam porquE tinham a benção do Monge que subira ao céu enquanto liderava o pelotão. Estavam no seu direito. Eram suas propriedades e sua cultura. Já as haviam defendido, em contendas, de tantos que se arvoraram em querer se apossar.
Aquilo, porém, era uma guerra. Pelo número, pelo motivo, pelo preço, pela novidade das armas e modos dos enviados para invadir. Eles, pagando em vidas o caminho da resistência. Enterravam parentes, vizinhos, compadres e amigos. Haviam aceito o contrato de sangue. Gente de palavra. Estavam decididos a ressuscitar os mortos se fosse preciso para aumentar seu exército e superar o opositor.
Mas o destino, o pior inimigo, aguardava surpreendente. Seu poder mais cortante que o aço, mais mortal que o chumbo dos combatentes. Num jogo de mistérios o calor da paixão rendeu os líderes opostos. Ele o novo Oficial assumindo o comando dos uniformizados, ela, a jovem com nome de flor, líder dos camponeses. Desorientaram-se os esquadrões. Em ambos houveram desertores e brados de posse. Assinaram com atos que não existe vitória na guerra.
E o vento, saudoso da noiva que perdeu para o Oficial oponente, passou a contar os desencarnados. Cerca de 25.000. Dizem que por isso uiva imitando o jaguar, quando se choca contra as árvores e os rochedos seculares entre Santa Catarina e o Paraná, na região do Contestado.