Mas que estrago faz a solidão com uma pessoa, pensava eu, fazendo o estilo dramalhão. Os olhos na tela, sem nem ao menos saber de qual tema tratava o filme. O ser humano é um animal social, sentenciei piegas, emocionada. Minha vida estava naquele pé de estagnação completa, e eu andava viciadona em novela das oito. Daí, influenciada pelos manuais de auto-ajuda, meu guru, livros de cabeceira, únicos conselheiros do momento, resolvi me aventurar para fora de casa. Ir ao cinema, mesmo sozinha, era o começo. E até que estava praticamente igual, cinema quase vazio, o escuro, minha solidão era a mesma. Mas não por muito tempo: “Boa noite.” Voz muito próxima, dava até para sentir o hálito. Ora! Em vez da voz fazer-me pensar que era a oportunidade de quebrar a minha solidão, fez-me sentir incômodo. Não sei por que, com tanto lugar vago, o cara achou de sentar logo do meu lado. Ignorei. “Você está sozinha?” Continuei no meu silêncio. “Eu também.” Mais próximo ainda, praticamente fungando no meu ouvido. Puxa, onde será que estava o lanterninha? Nestas salas de cinemas atuais, parece que nem tem mais lanterninha. “Que é isso, menina, é preciso ser mais aberta.” Quê! Aberta! Francamente, eu estava bem carente, mas não precisava ser punida desta forma. Deveria, talvez, levantar e mudar-me de lugar. Mas, sinceramente, achei um desaforo, eu havia escolhido o lugar primeiro, e depois, uma mulher, Deus meu, não pode ir ao cinema sozinha, sem que um… Agora o que era aquilo? Um pesadelo ou uma mão estava mesmo no decote da minha blusa? Aquela mão e meus dentes, fiz rapidamente a conexão. Meus dentes e sua mão, o único encontro possível, neném. Então, meus dentes afiados de vampiro, pingando sangue. A DENTADA. “Aiiiii, puta!” Levantei-me. “Porra! Não foge não, sua puta.”
E me lancei para fora daquele cinema. Na portaria, um senhor de uniforme, com ar cansado, desejou-me boa noite. Subi pelas escadas quase correndo. Pôxa! Estava aliviada e comecei a rir sozinha, até que tinha sido engraçado. Caminhei pelos corredores do shopping, pensando naquele teatro cômico e trágico, caça infrutífera de um coração solitário. E o melhor de tudo é que eu tinha levado a nocaute o tarado de cinema. Sentia orgulho de mim. Parei um instantinho para ver uma vitrine e segui em frente, acho que ainda ria sozinha, quando aconteceu.
Duas mãos repentinamente me agarraram por trás outra vez! , sobre os meus olhos, tampando-os, e uma voz: A-DI-VI-NHA! Um segundo, cena congelada, depois a reação: desvencilhei-me com uma cotovelada no estômago do atrevido e virei-me furiosa, com a minha bolsa armada, lotada de badulaques, prontíssima para “O MASSACRE 2” do tarado de cinema, sentindo-me capaz de armar o maior escândalo que, sem dúvida, iria chamar a atenção de todos os seguranças do shopping. Mas a pessoa trêmula que me fitava parecia-se somente com alguém que acabara de perceber ter cometido uma grande gafe. Tive a impressão de conhecê-lo. Um conhecimento, entretanto, vago, nebuloso e distante, como se eu fitasse uma estrela. Observei-o mais atentamente: olhos molhados, água doce, baunilha, azulíssimos, foi a primeira característica que me chamou a atenção. Cabelos fartos e aloirados, um tanto rebeldes, acentuando o rosto ossudo, lunar – e magro e esguio e tão alto. Mas ainda não sabia quem poderia ser. Que é isso? Perguntei mais calma, evidentemente apaziguada pelas características do rapaz, que, Deus meu, era uma beleza!
Des-desculpe gaguejou foi uma confusão, achei que você era uma amiga minha, que não vejo há tempos… De costas, vocês são tão parecidas…
Agora essa, de costas, hein?! Mas ele parecia sinceramente assustado, envergonhado, ou fingia muito bem. Seria uma forma de abordagem? Caramba! Se fosse isso, eu não podia evitar de me sentir muito lisonjeada, um gato deste! Comecei a deixar-me levar por aquela mansidão abobalhada e esqueci-me de todos os conselhos de mamãe: “Nunca se deve confiar em estranhos”. Preferi os mandamentos dos manuais de auto-ajuda, se é que eram mesmo de confiança. Mas como eram mesmo os conselhos? Preste atenção quando você sentir necessidade de falar com alguém que poderá ajudá-la de alguma forma, ou quando cruzar o olhar com um desconhecido, sentir algo como uma sensação de reconhecimento. Fique atenta, são sinais que indicam sincronicidade, coincidências produtivas. Esteja aberta para o destino… Ora! Se isso não era uma sincronicidade das boas e das mais bonitas, eu não tinha aprendido nada com os tais manuais.
Tudo bem, eu sou uma pessoa do tipo comum, freqüentemente me confundem com alguém, respondi com meu sorriso especial.
“Freqüentemente” era um pouco de exagero, mas tempos atrás um cara quase tão bonito quanto este também agarrou-me na rua e me beijou, pensando ter encontrado uma antiga namorada. Só que, desfeito o engano, ele sumiu envergonhadíssimo por entre a multidão. Não pude detê-lo. Desta vez, ai de mim, estava disposta a fazer de tudo para reter a minha beleza de sincronicidade.
Ele também sorriu com seus olhos azuis. Ficamos nos olhando uns instantes e então começamos a caminhar lado a lado, silenciosos, constrangidos, sem saber o que fazer. Tudo poderia terminar no prólogo, porque eu já havia perdido a coragem inicial, isto é, de estar aberta para o destino. Ele parecia também disposto a sumir na primeira oportunidade, o que deveria acontecer a qualquer momento. Mas, não sei, desde o princípio, alguma coisa: destino irremediável, Jung e suas coincidências, necessidade de confraternização, solidão, talvez. O fato é que aquele algo conspirava e manifestou-se num prosaico cheiro de hambúrguer. “Nossa! Este cherinho lembrou-me que estou com fome”, ele disse, quando passávamos ao lado da praça de alimentação. Convidou-me para um lanche tão naturalmente, como se de repente lembrasse de já ter marcado aquele encontro, e eu aceitei tão naturalmente, como se eu também acabasse de lembrar do encontro.
Sentamos um em frente ao outro, a mesa pequena, não dava para evitar meus joelhos tocando nos dele. O atendimento fast food despersonalizado não atrapalhou. Começamos a nos conhecer tão lentamente, que mal percebemos. Contei sobre a mão, a dentada e a minha fuga do cinema. “Hahaha, bem merecido.” Ele ria, e seus olhos retraíam-se apertados. Está se divertindo, pensei. Abriam e retraíam-se, como nuvens que cobrem e descobrem um céu azulíssimo. E passava a mão nos cabelos, furtivamente jogando-os para trás e acariciava a testa e ria e Deus meu. E se parecia nos gestos mais com alguém, que eu não conseguia lembrar. Ele contou que era um dia de marasmo, saíra para dar uma volta, comer alguma coisa, matar o tempo. E rimos, concordando que afinal era bom ter acontecido o equívoco. Que gostávamos de ter nos conhecido, estar assim, comendo hambúrgueres e rindo.
Sim, respondi entusiasmada quando, no dia seguinte, ele me telefonou, convidando-me para uma mostra de cinema no “Belas Artes”. Corada, felicíssima, lá do outro lado da linha senti que ele também corava. Ah, então começaram muitos encontros: o teatro, a poesia, o cinema, os livros, as pinturas. Pela primeira vez na vida, percebi que tinha muita coisa para aprender. Tínhamos assistido “Morte em Veneza” e no barzinho, ele me perguntava se eu entendia. “A chegada de Gustav von Aschenbach a Veneza num barco a vapor que mal se distingue no céu da manhã, ao final, sua morte na praia do Lido, não dá para esquecer, entende?” Não entendia. Ele continuava, paciente: “O Gustav, no texto de Mann, é escritor; no filme de Visconti, é compositor. Não é à toa esta mudança. Veja o Adagietto de Mahler presente em vários momentos na trilha, e principalmente na cena de morte de Gustav… A importância desta transformação de escritor/músico… Entende?” Não entendia. Não tinha importância, ele parecia gostar de ser o mestre. E eu cumpria o ritual sem escapatória, que muito me agradava, obediente, a pupila ansiava pelo saber e secretamente alimentava a paixão. Ô, paciência! para esperar que a paixão também se revelasse nele. Mas havia alguma coisa. Ele abria seus dedos de asas de borboletas que eram ícones sagrados nos meus sonhos, que eu imaginava na minha pele, me acarinhando apontando para uma pintura em uma exposição e ria, os dedos no ar, imitando o contorno das pinceladas, mas sem se comprometer com o fundo da tela. Como se estivesse sempre me avisando: cuidado, stopzinho, eu não desejo o seu toque. O certo, entre nós, é como esses dedos no ar, imitando os contornos, o quase toque, divagações, borboletas e sonhos e surrealismo. E minha paixão condenada a ficar à flor da pele. Eu sonhava sozinha e sentia no escuro, nua sobre os lençóis, seus dedos contornando sutilíssimos meu corpo. Ai, que agonia, mas jamais o arrepio do toque. Bem, pelo menos, estou me espiritualizando, conformava-me sem me conformar. Você entende? Não compreendia. Ô, paciência!
Mas pensava também na outra persona. Ele tinha uma semelhança incrível com alguém que eu tentava lembrar, desde que o vira pela primeira vez. Inútil, a imagem estava submersa no fundo da minha mente, ameaçava vir à tona e voltava para o fundo, como se até minha mente conspirasse contra, ou a favor, não sei. Um dia, perguntei se alguém já havia lhe apontado a semelhança que eu tanto me esforçava por lembrar. “Com minha mãe”, respondeu sorridente. E os olhos, quando riam com prazer, contraíam-se daquele jeito. Ficavam reduzidos a dois riscos, duas pinceladas de aquarela, aguada doce, azulíssimos, e passava as mãos nos cabelos, jogando-os para trás, e alisava a testa e ria daquele jeito e ai, Jesus! Os gestos acentuando a semelhança. Também não sabia porque era importante lembrar, uma razão louca, mas queria lembrar.
Um dia, telefonou cancelando um encontro. Um amigo, que não via há tempos, estava na cidade. “Você sabe, preciso acompanhá-lo aos lugares. Entende?” Não entendia, mas: Claro, telefona depois, sei. Então ele desligou. Ô! Decepção.
Os dias passavam, e o amigo continuava na cidade, será que tinha resolvido mudar para cá? Fui simplesmente atrás. Entrei no barzinho, e ele tomou o amigo pelo braço: “Vocês ainda não se conhecem, né?” Convidaram-me, e sentei. O amigo perguntava: “Vocês se conhecem de onde, uma antiga amizade, faz tempo?” Ele contou como foi o encontro no corredor do shopping. “Imagine, confundi-a com a Maria, de costas são iguaizinhas.” Rimos, fiquei sabendo que a Maria era irmã do amigo, que não encontrou semelhança nenhuma entre nós duas.. Lembrei-me dos manuais de auto-ajuda, eu os vinha desprezando ultimamente: A trajetória de vidas aparentemente separadas seguem paralelas, num momento qualquer aleatório se cruzam com uma finalidade, um aprendizado, uma mensagem… Qual era o significado, então? Maria, o amigo, ele e eu. Trajetórias de vidas, que se cruzavam para quê? Havia uma peça solta neste jogo que jogávamos sem entender, sem encaixe. Você entende? Não, ninguém entendia. Então meus olhos refugiados nos azulejos atrás. Notei-os embaçados de poeira e gordura. Alguém devia limpar estes azulejos, pensei, querendo desviar o pensamento, numa tentativa ridícula de fuga. Comecei a sentir desespero: uma estranha e secreta coisa harmônica existia no ar. Mas parece que só eu percebia. Tive vontade de perguntar mil vezes: Quem entende? Quem entende? Quem entende?
Então, veio a dor de cabeça, natural, porque na hora da tensão eu não escapo da enxaqueca. Uma dor que se alastrava da nuca até a testa, latejando num lado, na metade da cabeça. Então: Estou com dor de cabeça, preciso ir. “Mas já? Talvez um analgésico…” Não adianta só analgésico, quando é assim, preciso esticar-me no escuro. Noutra ocasião a gente marca alguma coisa. “Sim, claro, de acordo.” Na porta de casa, olhou-me perdido, quis entrar, esperar a minha melhora. Não, querido, seu amigo… Eu só preciso mesmo do escuro. Um beijo no rosto, fechei a porta. Olhei-me no espelho do banheiro, frasco de analgésico na mão, e nunca me vi tão pálida.
Sarei, obrigada, disse quando no dia seguinte, cedo, ele telefonou, preocupado. O amigo, sim, ia ficar mais uns dias, claro. Depois marcamos uma outra coisa. Desligou. Ô, desentendimento. Entender, entender, entender, era a peça que faltava.
Dias e dias passando, o amigo ficando. A viagem já havia sido marcada e desmarcada não sei quantas vezes. Resolvi voltar às caminhadas, melhor do que a dor de cabeça no escuro. Escolhi aquela manhãzinha e fui tomar um suco, antes do exercício, numa lanchonete em frente ao prédio onde ele morava, não por acaso, evidentemente. Próximo, tem aquele parque que é excelente para caminhadas. Então o porteiro aparece para um café. Conhece-me porque me abria o portão nas ocasiões em que eu ia visitá-lo. “Puxa, ainda não posso acreditar, você também não acredita, né?” Acreditar no quê? “No acidente de carro, nesta madrugada, você ainda não sabe?” Que acidente? “Quem contou foi a polícia, vieram bem cedo aqui. Aquele amigo está no hospital, mas ele coitado, tão jovem… você está entendendo?” Nunca entendia, sempre precisei questioná-lo duas, três vezes, quando ele me perguntava: Entende? Por isso perguntei: hein, quem? “Seu amigo, moça, o acidente de carro…” Ah, acidente, é? “Vocês não foram namorados?” Lembrou-se de perguntar o porteiro – E a lanchonete bem na hora é subitamente invadida por um bando de adolescentes. Vozes estridentes, gritos, risos e dor – “Não era seu namorado?” Insistia. Peguei o copo com suco borrifado de lágrimas e despejei tudo na pia atrás do balcão. Lembrei-me dos seus dedos abertos, como de asas de borboletas, fazendo o contorno no ar, quase tocando as pinceladas na pintura de que tinha gostado muito e me perguntando: Entende? Não, respondi ao porteiro. Ele me olhou dum jeito de quem não compreendia. Mais um, pensei.
Não queria ir, tive medo de que o rosto estivesse arrasado. Mas estava intacto entre as flores, a mesma beleza de sempre, apenas os olhos molhados de água doce, azulíssimos, permaneciam bem fechados, sem aquelas frestas por onde escapava a risada prazerosa. Mas são interessantes as contradições que existem na gente. Eu pensava que o desespero ia me embaralhar ainda mais as idéias, e, ao contrário, eu estava ali, de certa forma calma, observando aquela fisionomia, sentindo-me próxima de encontrar a peça que faltava para que o nosso jogo fizesse sentido. A persona, a semelhança que sempre tentei lembrar. E era minha última chance para uma observação tão detalhada assim daquele rosto. Esforço, esforço, precisava lembrar. Então, meu cérebro finalmente fez a conexão: James Dean.
Dean, que também havia morrido jovem em um acidente de carro. Eu lembrava de tudo. Quando filmava “Vidas Amargas”, Dean conheceu a atriz italiana Pier Angeli. Apaixonaram-se, e parece que se não fosse um impedimento religioso ridículo teriam se casado. Era tão irônico, que quase esqueci-me que estava num velório, no velório dele, meu Deus, que dor! Quase ri. A mãe da atriz, que era muito católica, impediu o casamento porque Dean era protestante. Dezesseis anos depois da morte de James Dean, a atriz se suicida, deixando uma carta em que diz que ele foi o único amor da sua vida. Eu havia visto o documentário na TV, naqueles tempos de reclusão em casa. Só não compreendia porque tinha esquecido-me de tudo. Deus! Agora eu sabia. Mas havia outra informação importante: Após a morte de Dean, correram boatos a respeito de sua homossexualidade. Mas se ele quase se casou com a atriz?! Ô, desentendimento! Talvez Dean também nunca tivesse compreendido.
Aproximei o meu rosto bem perto do dele e disse baixinho: Agora eu entendo. Não sei, parece que vi seus olhos abrirem umas frestinhas e deixarem escapar aquele sorriso lindo só para mim, não sei.