Carta Literária

Querido Carlos
(Ao meu primo Carlos)
In Memoriam
Estás muito longe de mim. Num lugar livre em que o espaço não tem limite e que já não necessitas da vitalidade física que tanto desejavas. Teu rosto deve expandir a saúde que precisaste tanto em dias de nossa infância. Daí podes realizar o que sempre quiseste: Defender-me em horas que achavas necessário, mas que eu te afastava sorrindo como a dizer que era melhor que eu mesma o fizesse.

Na minha cabeça as cenas de nossa infância se multiplicam e a saudade se condensa num mesmo pensamento de recordações irrecusáveis. O nosso companheirismo, ternura, carinho, a confidência de todas as horas e a necessidade da presença recíproca. Os risos, as discussões raras, a intimidade de cada palavra e a presença de teus olhos que me fitavam e que eu amava.
A certeza de que poderíamos sempre contar um com o outro inquestionavelmente, a defesa que se estabelecia naquela relação fraternal e maravilhosa e a convicção de uma afeição profunda e duradoura. As nossas conversas em que deixávamos escapar a alma e o sofrimento doloroso quando soubemos que estavas doente. Que teríamos de nos afastar e que irias para longe. Éramos ainda pequenos e nada podia nos levar a compreender aquela brusca mudança em nossas vidas.
Revejo a casa de nossa avó, grande e espaçosa onde ficaram os sonhos infantis e inocentes e onde deixamos guardados sentimentos que se perpetuaram pela vida afora.
Recordo a reunião de todos os primos, o barulho ensurdecedor para os adultos, a mesa farta e cheirosa, a avó Isa ainda muito loura e linda, os serões fascinantes nos quais alimentávamos nossa mente em efervescência constante. E que enchíamos nosso espírito do combustível necessário para que a imaginação voasse e tivesse forças para alimentar novas curiosidades.
Esse tempo não voltará jamais, meu primo. Não sabíamos que ali estava o momento certo de usufruirmos a presença e amizade e de agradecermos cada instante as nossas ternas brincadeiras e segredos.
Jamais esquecerei, querido Carlos, o modo muito franco com que me olhavas debaixo de seus óculos que corrigiam o ligeiro estrabismo, mas que me confortava e cuja beleza eu sabia avaliar.
Na energia que há muitos anos transmites de um lugar em que certamente encontrou paz e confiança, um lugar sereno e livre de sofrimentos, eu me refaço da dor de um dia ter-te perdido. Na verdade foste sempre alguém especial que sabia compreender ainda pequeno o que a própria vida impunha. E lembro-me quando um dia me disseste que irias para longe, mas que estarias sempre comigo na profundidade daquele amor fraterno e imenso.
Compreendo isso, hoje, Carlos. Cada uma das suas palavras e da sua aceitação sem limites. Entendo que havia muito de instintivo naquela bondade infantil que só eu compreendia. E que agora usufruis na paisagem encantada que já não faz parte do mesmo cenário que vivemos juntos, mas que pelo carinho eu posso pelo menos pressentir.
Beijos da prima
Vânia