Silêncio. Aparência de Maria Eugênia denotava silêncio. Mas os seus ouvidos não mais escutavam a razão do mundo. Sua consciência aos poucos sofria catastrófica falência. Maria Eugênia era silenciosa em seu andar silencioso e em sua respiração inaudível. Nãos suspirava. Maria Eugênia sobre seus pés finos e claros deslizava pelo assoalho do antigo sobrado onde morava. Deslizava imperceptível pelo mundo. Calada respondia os questionamentos da vida, mesmo sem nada questionar. Apenas respondia. Reagia. Sua realidade misturava-se apenas com o vidro da janela sempre fechada de seu quarto. Nunca abria. Não gostava de vento, chuva, trovões ou relâmpago. Os fenômenos lembravam sorrisos e ninguém no mundo ensinou-lhe a sorrir. Preferia a clausura da cama irremediavelmente arrumada e a gola da camisa incessantemente abotoada.
Sabia que não era fácil exercer a função de mulher na sociedade. Não é fácil ser mulher. Sensual, inteligente opcionalmente, gargalhar e não despentear os cabelos. Seduzir e ser discreta. Não, não, não. Ser mulher é algo muito difícil e dificuldades são coisas a serem anuladas. Preferiu não ser uma mulher aparente ou melhor era uma mulher mas não literalmente. Era uma mulher disfarçada de coisa. É coisa. Uma pessoa, um ser humano sente e Maria Eugênia não sabia sentir. Portanto acreditava ser coisa. Assim o era. Por isso possuía os cabelos amordaçados em grossas tranças e os olhos vendados por grossas lentes de óculos obsoletos. Seus seios foram amputados por grandes camisas sem aberturas ou decotes, enquanto que os quadris permanecem empoeirados sob tecidos grossos e longas saias. Contudo, Maria Eugênia pensava muitas coisas. Apesar do silêncio, Eugêninha como gostava de ser chamada freqüentava o sacerdote do seu tempo, um psicólogo. Dr. Silva, um senhor baixinho, careca de expressão séria que sempre ordenava: Maria Eugênia, fale. Ah que sacrifício para a pobre moça: falar! Puxa, como era complicado. Não gostava de falar. Preferia responder perguntas cujas respostas pudessem ser monossilábicas. Falar era um desafio e acreditava que o melhor era não o fazer.
Mas no seu interior (ora essa você achava que Maria Eugênia não tinha um interior) ela às vezes exercia alguns diálogos com seu demônio. Como no dia em que por alguma força do destino achou o professor de Lingüística IV, um homem interessante. Aquilo foi tão esquisito e inovador, pois nunca havia achado coisa alguma interessante, ainda mais um homem. É isso mesmo um homem. Quando conseguia indagar-se de alguma coisa ficava se perguntando: como deveria ser um homem de verdade? O que faz um homem? O que ele pensa? Quais são os seus gestos? É o professor de Lingüística era um homem curioso. Era tão imponente, grave e até mesmo um dia sorriu para Maria. Ninguém nunca havia esboçado qualquer olhar em sua direção, quem diria um sorriso. Apaixonou-se e até mesmo compartilhou o assunto com o Dr. Silva, ele ficou tão feliz.
No seu interior haviam ruídos como uns desejos que não entendia bem o que era. Isso mesmo, desejos ! Um dia percebeu um tremor leve em seus lábios e até lembrou-se que eles existiam. Eram um tremor perturbador. Era na verdade uma sede, uma sede que tomava seu peito e fomentava seu corpo de fome. Fome de algo que ela nem mesmo tinha idéia do que fosse. Tomou um banho e decidiu se acalmar. Outro dia um homem rude olhou para suas ancas e pronunciou “apetitosa”. Imediatamente estremeceu. Foi a uma loja, comprou uma calça ainda mais folgada, roeu todas as unhas possíveis e teve medo. Muito medo. Pânico na verdade. Sempre conseguiu se vestir tão bem de coisa. Como ele pode perceber linhas em seu corpo. No auge do seu desespero, Maria Eugênia percebeu que havia sido uma experiência agradável saber que era apetitosa. Como a palavra terminou em “a” isso significava que era um ser feminino, consequentemente uma fêmea. Não recordava mais disso. Apenas uma vez ao mês quando sangrava. Como doía. Dai bradava contra a natureza, reiterando a percepção de o quanto é difícil ser mulher.
Mas comumente era silenciosa e seus ruídos não podiam ser auscultados. Até aquele dia…
Acordou às seis e meia da manhã. Levantou e tomou um banho frio e rápido. Ainda no banheiro vestiu-se e rumou para a cozinha a fim de preparar o café. Estava apressada, pois naquela manhã daria sua primeira aula no novo colégio. Seria uma boa experiência ensinar literatura e falar de Machado de Assis. Enfim, conversava consigo mesma debatendo sobre a questão da fidelidade de Capitu. Aquilo a deixava tão intrigada e mal conseguia Ter uma posição adequada. Droga, derrubou o café, o café quente sobre a batata esquerda da perna. E aquele calor negro desceu até seu pé gelado, enquanto ela exaltada gemia de dor. Logo naquele instante tomou consciência de si mesma, pensou “gemi”. Nunca o fizera antes, costumava suportar qualquer dor em silêncio da mesma forma que os prazeres dos doces e chocolates. Automaticamente olhou para a tal perna e passou a mão nela para tentar aliviar a ardência. Tocou-se. Tocou-se e sentiu alívio. Logo um pensamento relâmpago informou-a que seria interessante fazer isso mais vezes. Tocar-se. Ficou atônita. Como podia fazer isso sempre já que sua rotina era baseada em hábitos e não gostava de inovações? Mas havia sido bom sentir o queimor do café em sua pele e o alívio das mãos por conseqüência. Repetiu. Derramou o café já menos quente sobre a outra perna e pousou a mão trêmula no local. Riu.
Deu continuidade ao dia. Só que naquela tarde foi até Dr. Silva.
– Doutor, tenho escutado uma voz.
– Uma voz? Como assim uma voz? perguntou intrigado o psicólogo.
– Uma voz que me manda fazer coisas.
– Coisas que tipo de coisas?
– Coisas que não estou acostumada a fazer. Tenho receio de atendê-la, mas pela manhã o fiz.
– O que ela mandou?
– Disse-me que seria interessante tocar minha perna direita. Que era bom. Achei estranho mais fiz. O mais estranho é que esbocei um sorriso ao fazer. É normal?
– Você não costuma se tocar?
– Por que o faria?
– É natural, Maria Eugênia.
– Não vejo necessidade.
– Gostei desta voz. Escute-a mais vezes. Pode ser sua consciência, sua sensatez.
– Mas elas nunca andaram conversando comigo. E se me mandar praticar coisas erradas, doutor? Como poderei saber?
– Faça o que a voz ordenar. Será bom. Experimente. Chegue em casa e faça o que a voz mandar. Na próxima semana você me conta.
– Mas…
– Faça.
Rumou para casa e da frente de seu espelho encarou-se. Definitivamente aquilo não era um hábito. Apenas fez. Olhou sua pele amarelada no reflexo do espelho. Viu que era macia. E que de fato não era tão amarela assim, pelo contrário sua pele era morena mesmo com o pouco contato com sol. Pouco percebia o sol, como pouco percebia a si mesma. Sorriu. É sorriu e logo sentiu um imenso desejo de comer uma grande barra de chocolate meio amargo com um gigantesco copo de leite. Não avaliou muito quanto ao horário e a adequação de fazer uma coisa dessas. Correu para cozinha e respondeu aos comandos da voz em sua mente. Lambuzou os dedos como nem mesmo na contida infância fizera. Mais uma vez o fez e pensou que seria divertido tomar banho vestida. Com roupa. Não inquiriu se aquilo era sensato ou não. Suas finas mãoszinhas abriram o chuveiro e logo sentiram o prazer da água fria caindo em seu corpo intocado. Logo aquele calor desceu por seu rosto, olhos, orelha. E como se uma divindade tomasse conta de sua alma, de sua carne, cantou. Cantou com os poros, com os dentes com a vida que como aquela água tomou parte de suas veias. Pela primeira vez sentiu o gosto da encarnação misturado com o sabor amargo do chocolate, do cacau, do mundo e esqueceu que o único sabor amargo que conhecia até então era o sabor da solidão. Estava viva.
E estranhamente uma nova divindade apossou-se de si e estantaneamente dançou sem música ou ritmo. Apenas dançou e percebeu-se incrivelmente feliz. Foi bom. Deixou as vestes caírem ao chão e contemplou o corpo nu revestido de água. Era fascinante saber que pela primeira vez sentiu o orgasmo do mundo e da vida.
Correu para o quarto e frente ao espelho novamente descobriu que era um ser vivente, e para sua surpresa o mais complicado de todos os animais: era uma mulher de vinte e poucos anos. Quer tinha seios rígidos, pouca barriga e alguns pelos arrepiados pelo vento da janela ineditamente aberta. “Olá” disse ao sexo que nem se lembrava que estava incrustado em seu corpo. Não entendia muito bem o que estava acontecendo consigo, apenas inferiu que estava nascendo naquele momento e como um ser nascente estava engatinhando e pela primeira vez sendo.
Apalpou as carnes virgens e descobriu que era feita de matéria: músculos, peles, sangue, perispírito e sensações. Fome, calor, medo, paixão e sede. Chovia lá fora e dentro de seu ser (enfim viu-se como ser) trovejava. Mas por que tudo isso? Quem era você voz que tão eloqüente falava e continua falando. O que quer? Para que acordar do sono eterno e deparar-se com um mundo vil e apaixonado. E como qualquer paixão era repleto de angustias, cegueiras, loucura e valores distorcidos. Não queria apaixonar-se pela vida. Assim morrer seria mais fácil e menos doloroso. Ora voz não importune! Mas a tal nova consciência era auto-suficiente e não costumava atender pedidos. Prosseguiu em sua mente ditando comportamentos e atitudes.
Logo ordenou que se vestisse de mulher. Soltasse os cabelos e beliscasse as bochechas. Sua face então tomou rubor. Mas não tinha o que vestir. Seus trajes sempre foram camuflagem para o mundo. Tinha medo dos homens. Tinha medo dos sentimentos e ainda mais dos olhares. Nunca havia sido olhada e se alguém o fizesse de repente poderia ser um grande choque. E se as pessoas a achassem bonita. Meu Deus, que pecado! Como poderia agir naturalmente? Se os homens a desejassem e se aproximassem? Puxa, a solidão sempre foi um manual fácil e preferia não aposentá-lo agora. Não tinha muita escolha. Vestiu-se de flores, perfumou-se de fêmea e saiu por aquela porta.
Foi para o mundo e não conseguiu atinar se podiam vê-la. Se a queriam. Se a viam. Por mais que criasse uma nova indumentária parecia estar castrada para mundo. Não conseguia entender se era visível para a sociedade. A tal voz parecia tê-la abandonado no circo das feras e agora estava sozinha. Sozinha no momento em que viu o primeiro sorriso em sua direção e como uma tola se apaixonou. Ele sorriu e sua alma se iluminou. Logo se deu conta que estava perdida no mundo, pois era mulher, apaixonada, virgem, jovem e talvez o mais difícil de tudo: viva.