Era um tempo em que já havia a televisão, mas ela era apenas um meio de ver cinema sem pagar entrada. Era Rin-tin-tin, Lassie, uns musicais, filmes de série, comedinhas melosas do dia-a-dia do tipo Papai Sabe-Tudo, Alô Doçura; algum teatro na Tupi, e novela. Programa cultural, documentário e jornalismo eram raridades. Tinha futebol, em preto e branco. Mais nada.
Assim, sujeitos que por alguma razão eram famosos, tinham sua fama limitada a não mais que uns dois ou três municípios adjacentes. Ouvia-se falar de alguém só mesmo quando se tratava de um artista, um bandido perigoso, ou de um político. Mas era pelos jornais. A televisão não tinha esse caráter informativo e imediato que hoje predomina. Não era um veículo, ou uma mídia, como dito hoje. Era só um passatempo de alguns privilegiados. Poucos dispunham da telinha hipnotizante.
Por isso, nas cidades pequenas quem podia gastava mais tempo no clube. O resto, quem não tinha como, ficava no campinho de futebol ou, principalmente, na sinuca jogando ou ensebando os bancos de madeira, sapeando. O bilhar era um ponto de reunião, uma espécie de clube fechado onde não se precisava ser sócio. Entretanto, ali o acesso era restrito, só os iniciados marcavam presença.
Patos, malandros, desocupados crônicos, viradores, biscateiros, aposentados, sapos, os bebuns oficiais e gente viciada em jogo eram a fauna reinante, os freqüentadores habituais. Não eram propriamente uma escória, mas estavam bem longe de ser a nata da sociedade. Era um mundinho separado, onde se desenrolavam os draminhas bestas do cotidiano: falta de dinheiro, de emprego, de qualquer perspectiva melhor de vida, gente vegetando naquela mesmice diária, fingindo ter algum objetivo. O joguinho de vida, mata-mata, desafios entre eles mesmos, tudo era motivo de algum empenho por absoluta falta de mais o que fazer.
Um estranho que entrava no salão era imediatamente alvejado com uma saraivada de olhares de todos os tipos: olhares curiosos, olhares inquisitivos, esperançosos – quem sabe era um pato novo se aventurando? Possibilidades de ganho fácil à vista… Ou então era olhado como um intruso e varrido dali empurrado pelos olhares de aviso, desconfiados. Sobrancelhas ostensivas levantadas numa atitude bem típica: Quer o que aqui? Vá rapando! Era o que os todos olhos diziam.
Havia os eventuais, que se faziam presentes uma vez por mês, logo após botarem a mão no suado e magro salário. Apareciam sorridentes em busca de alguns momentos de diversão. Eram muito bem recebidos, esses. Mas, em geral saíam tristes… e duros! Começavam batendo uma bolinha sem valer nada, mas não resistiam e logo entravam num vinte-e-um, o joguinho maligno… A tentação de uns cobres no mole cobrava desses um preço alto. Iam embora quebrados.
O vinte-e-um era assim: todas as bolas na mesa, da um à sete. Tirava-se o ponto, que consistia em uma tacada em direção à tabela do fundo, a bola voltando, parando próxima à tabela oposta. Jogava primeiro o que conseguira a melhor aproximação. A ordem de jogo era determinada pela proximidade da bola à tabela. Jogo iniciado, dinheiro casado numa caçapa. Noutra, tampinhas numeradas de um a sete. Bola livre, podia-se tentar qualquer uma delas. Ao matar a primeira bola adquiria-se o direito de colher uma tampinha na caçapa. A tampinha retirada a jeito de se escondê-la na concha da mão. Uma olhada furtiva para ver o número dela, e somava-se a bola morta com o número da tampinha. E aí prosseguia-se a tacada, era manha, estratégia, disfarçar pra ninguém perceber quais as bolas necessárias pra se bater o vinte-e-um.
Já o jogo de vida era aparentemente o mais simples, mas muito mais brabo, vertiginoso: cada um com a sua bola, defendendo-se e matando. Matar todos os inimigos, para não morrer. Era jogo rápido. No final, o sobrevivente ficava com a bolada do cacife.
Os incautos jogavam levados pela enganosa facilidade das regras rasas do jogo. Mas era um sumidouro disfarçado pelo verde-grama do pano. A malandragem limpava os trouxas, muitas vezes tomando-lhes o dinheiro do leite, da compra de mês, do aluguel… Ao ver os caraminguás mudando de mão, batia um desespero, mas não havia piedade. Jogo é jogo, sem chance.
Num desses dias de tarde quente, pasmaceira, o bilhar estava às moscas. O silêncio só rompido pelo bêbado contumaz que roncava aos arrancos, babando, no banco destinado aos sapos. Ao fundo, uma rodinha de malandrecos cochichava alguma trama, tratava um joguinho valendo merreca, come-tempo, só pra quebrar a rotina.
Então entrou um sujeito. Reles tipinho, baixo, idade entre uns vinte e cinco, máximo trinta. Magro, inexpressivo. Rodou pelas mesas, olhando de esguelha. Desenganchou a esmo da taqueira da parede um taco, pediu as bolas e ficou batendo sozinho. Ninguém se aproximou e nem quis saber a que vinha o fulano. Deixaram-no lá, batendo suas bolas, meio desajeitado, inofensivo. Formaram uma mesa de mata-mata, e o forasteiro pediu para entrar na parada. Entrou, jogou algumas rodadas e perdeu uma mixaria. Batia na bola certinho, via-se que tinha uma boa noção, mas nada incomum, não tinha jogo. Deixando entrever que a moçada local era uma parada acima das suas possibilidades, saiu do jogo e ficou de lado apreciando, mamando um refrigerante na própria garrafa.
Havia então os mitos da sinuca, o maior deles, falado em todos os salões era o Carne Frita, o maior taco já surgido. Joaquinzinho, Gaguinho, Fantomas, Cabelo Branco, entre outros. Cantados, lendários, mas nunca vistos, ao menos aqui pela redondeza. Comentava-se que esses sujeitos surgiam num salão assim, como quem não quer nada, fazendo-se de bobos, armando jogos. E lá pelas tantas mostravam as garras, devoravam os adversários como quem come pão com manteiga. Na maior parada mostravam o jogo, limpavam a mesa, pegavam o dinheiro e sumiam. Como um cometa. Fosse hoje, estariam todos na tevê, como artistas do taco e da dissimulação que eram. No entanto, uma vez conhecidos, jamais pegariam os patos.
Mas ninguém pensava em nada disso naquele momento. O joguinho prosseguia sem novidades. Até que entrou outro, um mais alto, espigado, chapéu de feltro na cabeça, sem jeito de jogador. Foi ao fundo, sentou-se e ficou apreciando as jogadas dos cobras locais. A cada jogada mais difícil notava-se que ele aprovava, balançava levemente a cabeça e aplaudia em silêncio a habilidade do jogador. Havia bons tacos no salão, os melhores da cidade, um deles era o Nenê, outro o Índio, mais o Macaco, mais o Romeu. Os demais rivalizavam entre si, mas num nível abaixo desses. O jogo seguia, cada um tentando engolir o outro, as jogadas endurecendo, defesas cuidadosas, matadas arriscadas. Espeto geral, jogo duro, quem podia mais chorava menos.
O tal que chegara depois quis arriscar umas tacadas. E entrou no jogo. Meio vacilante, indeciso, jogadas ingênuas, não deu pro começo. Pagou a última perda, pôs o taco sobre a mesa e declarou: “Chega desse jogo, meu jogo é partida. Alguém quer valer uns trocados?”. O clima do bilhar deu uma esfriada, aquietou. Como que num pressentimento, ninguém se apresentou. Exceto o estranho que chegara primeiro: “Pois vamos ver esse jogo. Vale quanto?”. Combinaram o cacife, deram o dinheiro na mão dum terceiro, arrumaram as bolas e sortearam a saída. O sujeito mais alto tirou o chapéu e duas listras brancas apareceram no seu cabelo. Cabelo Branco. O outro sorriu e cumprimentou gaguejante, demonstrando respeito, mas nenhum medo. Parecia feliz de ter achado um adversário à altura. Era o Gaguinho. A surpresa era mútua.
Cabelo Branco e Gaguinho, duas das feras solitárias em campo buscando suas vítimas. Por um desses caprichos do acaso topavam-se, finalmente. O salão todo ficou em respeitoso silêncio na presença dos dois. Entre os assistentes houve quem se benzesse, e vários suspiros de alívio por terem inadvertidamente escapado das garras temíveis dos jogadores. Ingenuidade achar que alguém teria chance, uma que fosse, de ganhar de um daqueles.
E o jogo se iniciou. A cada saída uma espécie de xadrez se desenvolvia através das defesas, do traçado preciso das bolas correndo sobre a mesa. Bola colada, longa, quase impossível o surgimento de uma jogada. O menor descuido, erro mínimo, era o suficiente para o jogo se abrir ensejando uma sequência mortal. O povinho mudo, respiração presa até a sete cair e a mesa ficar limpa. Era lá e cá. O jogo não parecia ter fim. A cada empate as paradas dobrando.
Mas o dinheiro visivelmente era o menos importante, o que de fato contava era vencer. O jogo pelo jogo, o prazer de sobrepujar o adversário, de impor-lhe o amargor da derrota. A frieza do sangue, o risco calculado, a estratégia, não mover um músculo da face diante da dificuldade, o controle do jogo e, na primeira chance, o ataque fulminante… e o adversário vencido, prostrado diante da supremacia do outro. Importante era isso, o dinheiro era só para impor o limite.
Todos olhavam atentamente, não perdiam um lance, um trejeito sequer, um quase imperceptível repuxar de canto de boca era observado. Especialmente as mãos eram vigiadas, que mãos são delatoras, crispam-se, abrem-se, apertam-se… Para quem sabe vê-las, falam mais do que palavras. Buscavam um indício de enfraquecimento, de medo, incerteza, qualquer detalhe que demonstrasse quem venceria. Tarefa difícil. Os jogadores pareciam de pedra, insondáveis na imobilidade da espera da vez de dar sua tacada. Enquanto o da vez executava o seu jogo, o outro fumava ou bebia olhando para o nada, como se nem estivesse ali, imaginando sua próxima jogada só quando a bola parava.
Chegada a hora concentrava-se, passava o giz lentamente na cabeça do taco, com extremo cuidado. Examinava a posição das bolas, armava a jogada mentalmente, puxava o punho da camisa para cima, firmava o taco entre os dedos, espremia os olhos e batia com a absoluta precisão resultante das milhões de vezes que já fizera aquilo. O estalido do impacto e a bola escorria fácil para dentro da caçapa, como se chupada por uma inevitável gravidade. Ou então, na impossibilidade de matar, jogava defesa. A jogadeira ia lenta, com efeito, e tocava a bola da vez levemente, escondendo-a, dificultando ao máximo a tacada do adversário. O que definia o jogo não era exatamente um erro, mas sim um cálculo falho em que um milímetro fazia a diferença. Ou a ousadia do oponente que resolvia tentar uma jogada quase impossível ao ver a partida em perigo. Ia pras cabeças, como se dizia, era tudo ou nada.. Exigidos superavam-se a cada tacada, e o jogo crescia… A platéia embevecida, hipnotizada…
Sabendo-se observados, os jogadores tratavam de corresponder à expectativa, empenhavam-se a fundo. Eles gostam de platéia, admiradores. Alimentam-se disso, da vaidade que a superioridade lhes confere. O que se joga ali não é dinheiro, é fama, prestígio e respeito, especialmente o respeito próprio. Joga-se, no fundo, contra si mesmo. O adversário é apenas um componente necessário à cena. Para o povinho que ficava sem fôlego enquanto a bola corria, nada disso era levado em conta, apenas queriam saber quem sobreviveria ao embate. E depois comentariam por dias, semanas e meses a façanha do vencedor.
Aumentariam, inventariam, transformariam o jogo em lenda, no jogo da vida. Porque certamente jamais teriam outra chance de ver um encontro daqueles.
Num certo momento, bola decisiva, Gaguinho vacilou. Foi um nada, um triz, que tirou aquela bola da trajetória desejada. Deu queixo. Cabelo Branco aproveitou-se da chance, que era única, sabia que outra nunca mais haveria. E fechou o jogo com uma tacada fenomenal, quarenta e tantos pontos partindo da quatro.
Virou-se para o cacifeiro, recebeu o bolo de notas, escolheu uma e a deu de gorjeta. Ajeitou o chapéu na cabeça, e saiu em meio ao burburinho geral.
Gaguinho estático, mudo, o taco fincado no chão, os olhos fixos em algum ponto no teto, cismando no quanto os deuses do jogo são terríveis e implacáveis.
A amargura era tanta que ninguém disse nada. O silêncio era a única homenagem ao vencido.