Era um dia chuvoso. Eu estava vestido no melhor estilo Carlos Gardel, em pleno centro de Buenos Aires. Entrei no hotel Cambremon, na Suipacha, e segui em direção ao restaurante, onde começava a acontecer o “happy hour” daquela tarde-noite. Sentei-me à mesa que ficava mais próxima do quarteto de músicos que ali estava para entreter os hóspedes. Pedi um vinho Found de Cave e “mollejas” como aperitivo. O quarteto tocava alguns clássicos do tango, os quais incrementavam o sabor do vinho que havia selecionado. Fui deixando-me levar pela bebida e pela música. Já passava das nove horas da noite, quando começaram a tocar Astor Piazzolla. Pedi a segunda “botella”, um “bife de lomo” e uma “ensalada de radicheta”, que me foram servidos quase que imperceptivelmente. Estava sonhando no meio das melodias de Fuga y Misterio e de Hace Veinte Años. Ao final da segunda garrafa, percebi a presença de um senhor, aparentando uns sessenta anos, de barba e com uma calvície parcial, que também assistia àquele show especial e parecia entregar-se completamente às músicas que ouvia. O som de Adiós Nonino pareceu ser a senha para que ele baixasse a cabeça e começasse a verter algumas lágrimas silenciosas. Levantei-me, fui até a mesa onde estava e, com a solidariedade dos bêbados, perguntei se poderia ajudá-lo. O portenho pediu para que eu me sentasse ao seu lado e ofereceu-me uma taça do vinho que bebia. Começou a falar que aquelas músicas eram tudo para ele. Que a noite era tudo para ele. Que se sentia o próprio “bandoneón”. Num palco reservado, apareceu um casal, que começou a dançar os tangos que o quarteto tocava. A combinação da dança com a interpretação do clássico Libertango fez com que o homem se levantasse e fosse até o músico do “bandoneón”. Falou qualquer coisa no seu ouvido e pegou o instrumento para tocar. Um show à parte, que atraiu hóspedes e despertou a curiosidade de transeuntes que passavam pela calçada do hotel. Tocou várias canções de Piazzolla, as quais foram dançadas magnificamente pelo casal. A última música, Reminiscencia, foi interpretada de tal maneira, que podia se ver a alma do nosso amigo desprendendo-se do corpo e regendo o quarteto eufórico. Terminado o show, largou o instrumento no chão e saiu pelas ruas vizinhas ao hotel, provavelmente em busca de um café onde pudesse se sentar para refletir um pouco. Fui atrás do sujeito, elogiando-o, dizendo que aquilo havia sido sobre-humano, que, se Piazzolla estivesse vivo e visse aquilo, certamente o contrataria para fazer parte do seu grupo. “Mas ele não morreu!!”, disse o homem com a voz arrastada, os olhos vermelhos e as mãos trêmulas. Passamos uma noite boêmia em Buenos Aires, pulando de café em café, assistindo a vários shows de tango feitos para turista ver. No final, estávamos cambaleando, tomando cerveja Quilmes e escutando milongas em Palermo Viejo, uma região da cidade onde os turistas normalmente não são vistos.
O dia seguinte era sábado, dia de voltar para casa. Acordei tarde, com uma ressaca terrível. Tomei um banho, arrumei a mala e desci para a recepção do hotel, a fim de pagar a conta e pedir um táxi. Enquanto esperava pelos cálculos da recepcionista, comentei com o gerente sobre o maravilhoso espetáculo que havia acontecido, na noite anterior, no restaurante do hotel. O gerente olhou-me com um olhar de incógnita que só os argentinos sabem fazer. “Ontem, não abrimos o restaurante, senhor”. Pensei que fosse um tipo de brincadeira dos portenhos, com o qual não estava acostumado. “Faz uma semana que o nosso restaurante está em reforma”. O gerente estava falando sério. Pedi, então, para que a atendente tomasse conta da minha bagagem, fui para o andar térreo, abri a porta do restaurante e vi as mesas cobertas com toalhas plásticas, paredes quebradas e muita poeira no ar. Já ia fechando a porta, quando olhei um enorme quadro, jogado num canto, sem nenhum cuidado no ambiente em que estava. Entrei, cheguei bem perto e pude ver que era a pintura do retrato de uma pessoa bastante parecida com o colega de copo com quem estivera na noite anterior. Mais jovem, com um “bandoneón” nas mãos e um sorriso no rosto. Retornei ao gerente e perguntei-lhe de quem era o retrato naquele quadro. “De um hóspede ilustre, que havia freqüentado o Cambremon por muitos anos e que, antes de morrer, doara o quadro para o hotel”.
A chuva havia parado e o sol brilhava, mansamente. Com a cabeça em polvorosa e um horário de vôo a cumprir, a mim não restava mais nada a fazer, senão pegar um táxi, o avião e curar o mais rápido possível a maldita ressaca que fazia doer todos os ossos do meu crânio.