Meu pai era de pouca altura, não um nanico, mas de menos que a mediana e, em decorrência da sua parca estatura, compensava o tamanho com brabeza. Que baixinho, no geral, é brabo, chega a ser abusado, para se impor. Por bem se lhe tirava com facilidade até a camisa, mas por mal era o diabo. Sendo o caso, seus olhos claros se apertavam numa fenda fina, o cenho franzia, os beiços embranqueciam. Então, nesse estado, se embrabecendo, ele era um perigo. Não reconhecível, o seu Rodrigues, numa iminência dessas de perda da calma, estranhava até mesmo os de casa.
Tinha lá seus poucos haveres. Bem ganhos, com muito trabalho e empenho: um sítio sem casa no socavão da serra, cruzado por um riachinho, pastaria meã bem cercada pra invernada de gado mestiço. E algum trocado que punha a juros, conforme o costume da época, que então quase não havia banco. Não se falava em poupança, era o chamado “dinheiro guardado”. Máximo uma conta na Caixa Econômica, coisa já de gente remediada, pra mor de ter algum cobre em disponível nas emergências da vida. Dinheiro assim, suado, era pra ser guardado no seguro, com garantia do governo. Ou então, quando a juros, era pra ser posto em mão boa e cair no esquecimento, usufruindo da renda. Com a devida garantia, que era não mais que a palavra. Era um tempo bom, as gentes se fiavam no valor da palavra, porque mais não se exigia e nem se dava. Papel tinha nenhuma valia. Mas havia também quem não prestasse. As quebras, isso já havia, como sempre houve. Insolvência. Me alembro, meio vago, de um tio que depositou todas as suas economias em mão de um conhecido comerciante da cidade. O sujeito foi à bancarrota, fracassou de fio a pavio, num tempo de quebradeira, fechou as portas e sumiu no mundo. O tio perdeu tudo o que tinha, de uma hora para outra. Mas não fez diferença, pobre era e pobre continuou. Nada mudou na sua vida, só perdeu a esperança de, um dia…, mas nem sabia do quê. Esperança era, sabia, de alguma melhora de vida. Mas qual o quê! Ara, principiava a ganhar de novo, pois acreditava em recomeços.
Meu pai era um homem bom se não tirado do sério, já disse. Cuidava da gente com zelo, do miúdo patrimônio a custo ajuntado, da fazenda onde era, como se dono, o administrador. Respeitado como pessoa de confiança, justo, honesto e trabalhador. Se tinha defeito mais grave, eu nunca soube, decerto que tinha, mas a gente não vê defeito em quem gosta e respeita. Tinha lá seus negócios à parte, umas quireras espalhadas em boas mãos, que lhe garantiam uma renda razoável, permitindo luxo de cavalo bom, bem aparelhado, um par de vacas de leite, e um eito de bom pasto de capim-gordura, uma capineira de napié, colonião, um e outro gado de cria. Vez por outra uma ida a cidade para as compras de mês. Tinha uma inquietação permanente com o futuro dos filhos, queria demais que nós estudássemos. Gente sem estudo não vinga, desacontece na vida, nem a sorte ajuda, vivia repetindo.
Duma feita deu-se que, fiando-se em amigo, ajustou um empréstimo a um tal Dito Lúcio, um mulato influído, espantável, falador, desabrido, negociante de gado, que carecia de um reforço de capital visando expansão dos negócios. Meu pai, se bem me alembro, passou a ele quantia de dois contos de réis, sem prazo, a juro baixo, apalavrado.
Dito Lúcio, entretanto, homem de pouco tirocínio, mercadejando sem tino, foi se embramando nas suas barganhas, acabando por ficar com dívidas e com minguado restolho de gado. Mas o que se referia era que seu patrimônio fora malgasto em jogo de bisca, bebida e dadivosas mulheres. Hora dessa é que se vê o bom pagador, um homem brioso no mínimo ia à cata dos seus credores dando-lhes alguma tranqüilidade, que assim que o vento virasse, havendo melhora nos negócios, pôr-se-ia em dia com todos. Destarte granjearia alguma confiança. Mas ele não fez isso. Contrariando o esperado deu de falar que fora explorado, os juros imódicos, a causa da sua derrocada, e que não pagava a ninguém, que a dívida já estava quitada com os tantos juros pagos no correr do tempo. A culpa dos seus fracassos jogada a esmo no lombo dos outros.
Tanto disse, que todos ficaram sabendo. E chegou aos ouvidos do meu pai que a dívida não seria quitada. Nem renda, nem capital. Quem havia afiançado Dito Lúcio, um conhecido Servino de tal, adiantou-se e disse a meu pai que não se preocupasse, que a dívida era dele, que fiador é devedor duas vezes.
Mas seu Rodrigues, meu pai, era sistemático, tinha lá seus princípios, e não quis receber do endossante. Fechava questão em ser pago por quem dele levara o dinheiro. Se Dito Lúcio fora homem pra vir buscar, pedir emprestado, também o seria pra trazer de volta o que de bom grado meu pai lhe servira. Recado dado. Falas indo e vindo. O falatório se avolumava, ganhava feição de provocação, avizinhava já uma quizília para o acerto da conta.
Numa tarde, sexta-feira, inverno inda era, chegou meu pai e não desarreou o cavalo. De costume, ele chegava, me estabelecia num lanço em cima do cavalo e, por alguns instantes, eu cavalgava parado, o cabo do cabresto preso na trave. Mas, nesse dia desapeou apressado, nem quis janta. Jogou a capa na garupa do Maranhão, virou nos cascos e disse que rumava à cidade, para comprar um revólver, que tinha um certo ajuste que não podia esperar, pra resolver no sábado.
De habitual, seu Rodrigues não andava provido de arma, embora fosse uma época braba. De manhã, no mangueiro, contavam-se os leiteiros e as armas, cada um com a sua. Um caboclo que se prezasse, de regra tinha ao menos um revólver e uma espingarda. Os mais requeridos eram os chamados trademarques, trinta-e-oito; espingarda de fiança era madespã, de médio calibre pra usos diversos. Quem não podia tê-las, ainda assim se arrumava com uma garrucha ordinária – uma rabo-de-égua, dois tiros e uma carreira – e uma pica-pau de carregar pela boca, de escorva, a dita “espere-um-pouco”, assim denominada pela lentidão da recarga. Desajeitada, mais perigosa quanto mais comprida.
Meu pai voltou de madrugada, um longo revólver, tão preto era azulado, na cinta. Designado Escudo, marca estrangeira, de boa qualidade. Quem assegurava era o turco da loja. Balas novas, brilhantes. Meu pai sopesava a arma e olhava pra longe, pensando no que deve um homem fazer para manter sua vida regrada, algumas coisas que não se deixa passar, para não se perder o respeito. Seja lá o que custe, seja lá o que for, essas têm de ser resolvidas.
Argemiro, o Grilo, agregado nosso, depois da janta me disse, como se dissesse pra ele mesmo, que meu pai havia caçado encrenca grossa, que Dito Lúcio não era nenhum primor de gente e nem flor que se cheirasse, farrombeiro de marca. Quisesse meu pai, Grilo cuidava daquilo a seu modo. Grilo era moço, beirando quem sabe uns vinte e quatro anos; magro, moreno, meio índio, um braço seco de nascença, o direito, que escondia em manga de camisa, a mão estropiada, que semelhava a uma garra, o vezo constante de guardar a mão seca no bolso. Apesar dessa sua falta, era ligeiro no manejo da faca, que atirava canhoteiro a mais de dez braças, com garantia de acerto. Habilidade de circo. Era bom cavaleiro, peão recomendável, laçava, e pegava garrote no braço. Sua deficiência parecia ter um efeito de se contrabalançar noutras inusitadas qualidades. E Grilo era frio feito um sapo, fala mansa, vagaroso nos gestos, destempero nenhum, aquela calma enganosa, de antes de chuva forte. Ninguém abusava dele. Diziam que inda menino matara um homem numa cidade longínqua, fundão de Minas. Uma legítima defesa reconhecida, e nem fora preso. Mas decidira se afastar do lugar, e viera para cá viver sua vida. Estava em casa antigo, desde antes de eu haver nascido, era o escudeiro de seu Rodrigues, fiel mais que um cachorro de lida. Seu Rodrigues, no entanto, não admitia adjutório em caso dessa natureza, era coisa a ser resolvida entre Dito Lúcio e ele.
Grilo argumentou com meu pai que ia junto, nem pro caso de ser necessário, só companhia. Mas meu pai recusou, peremptório.
E fomos dormir sabendo que o dia seguinte ia ser daqueles, espera angustiosa, de fim insabido.
De manhã, madrugada brumosa, levantei, e à luz do lampião na baia ao lado da casa, vi meu pai encilhando o cavalo. Maranhão, o alazão grande, tostado, impaciente escarvava o chão com a pata dianteira. Pai estava sério, não sei o que se lhe passava na cabeça naquele momento, mas suponho que não era boa coisa. Grilo chegou pronto como para ir junto, mas tornou a ser repelido. Uma caneca de café fumaçando, e meu pai saiu cedo, ainda no escuro. Grilo me pôs na garupa pra ir junto até a porteira. Fomos devagar. Grilo abriu a porteira e fez um gesto de desânimo. Coisa louca, essa vida! Meu pai tocou dois dedos no chapéu se despedindo, eu fui tirado da garupa e ele saiu a passo, sumindo no ermo da estrada. Era uma viagem bem dilatada, andando bem chegaria de tarde ao seu destino. Dito Lúcio tinha seu sítio obra de umas doze léguas da nossa casa, na comarca vizinha, num desvão da serra.
Ao que eu soube depois, muito tempo passado, seu Rodrigues cavaleou o dia inteiro, parando apenas para aquentar o virado, amornar um café e beber água de mina, dessas que escorrem feito choro dos lugares mais altos nas voltas da estrada. Ali, na volta fria da estrada, num ermo entre matos ensombreados, os barrancos molhados, recobertos de musgos e líquenes a modo de um veludo verde estendido pela barrancaria. No entanto, a água que vinha daquilo era pesteada, malsã, nem podia ser bebida. Seu Rodrigues escolheu cioso um olho d’água que vertia entre pedras e nele saciou sua sede. De novo amontou no cavalo e, a caminho, pensou e pesou cada palavra que diria, cada gesto que faria. Evitaria ao máximo encrenca mais graúda, mas não dava vez para nenhuma reação, se adiantava em qualquer circunstância, velho costume seu. E não voltava sem solução da pendenga. Vez por outra ajeitava o revólver que lhe pendia à direita na ilharga, coisa incômoda é arma, mas de precisão certas vezes.
Chegou ao sítio do devedor renitente eram já umas cinco e pouco da tarde, sol morrendo, vermelho de fim do inverno. Abriu a porteira sem descer do cavalo, medindo a pressão que fazia com o calcanhar da bota no vazio do animal, retesando a rédea, controlando o agitado e infatigável Maranhão. Subiu num arranco a curta ladeira que morria num platô amplo, o terreiro da casa.
Surgiu assim, num repente, como saindo do nada. Foi recebido com muita surpresa. Nunca Dito Lúcio esperava visita dessa qualidade, era pra ele uma espécie de afronta, vir à sua casa em missão de cobrança, assim sem anúncio. Meio desaprumado, sungando as calças com certo desajeito, pra disfarçar e ganhar tempo, saudou seu Rodrigues como se nada estivesse sucedendo. Meu pai atento a qualquer gesticulação suspeita, a mão crispada no cabo da arma por entre o rasgo da capa. E, sem apalpar, disse a que vinha, queria o dinheiro de volta pra resolver negócio urgente. Foi direto e seco. Mas Dito Lúcio, recuperando o siso, bambeou a conversa, se disse desprevenido, alegou perdas recentes que o tolhiam de saldar o compromisso, apesar da sua boa vontade. Meu pai insistiu que a necessidade não podia esperar, que se desse um jeito qualquer, inda que fosse parte da dívida, carecia de ser resgatada. Até então permanecia sobre o cavalo, o que lhe dava posição sobranceira. Dito Lúcio retemperou, se exculpou do mau jeito e convidou-o a aportar, entrar e jantar, que a janta, pronta a essa hora, estava no ponto de ir à mesa.
Não houve jeito de refugar, aquilo era um sinal, e seu Rodrigues não era homem de desfeitear ninguém. Tratado com bizarria, retribuía em igual medida.
Portanto, aceitou, mesmo que ressabiado. Entraram na casa, na sala grande, e tomaram assento como se grandes amigos. À guisa de espertar a fome, beberam um restilo forte, embora Seu Rodrigues não fosse dado a bebida. Aceitou decerto pra mostrar dureza e bebeu sem cara feia. Uma menina magra, moreninha, de trança, olhos grandes e assustados, trouxe uma gamela com água pra mor de se lavarem as mãos. A janta veio da cozinha, trazida por outra menina com a mesma cara embora mais alta. Galinha, arroz, feijão e couve rasgada. Comida boa e cheirosa.
Enquanto comiam, Dito Lúcio foi ajeitando o assunto, dando de mão na conversa, tateando. Tudo de uma vez não podia pagar, mas dava-se um jeito. Tinha um acerto com um seu compadre, Zé Emboaba, que morava ali perto. Podia ir lá de manhã e conseguir uma parte do débito. Se seu Rodrigues se dispusesse a dormir por aqui, que seria de gosto de Dito Lúcio dar pouso ao visitante. Seu Rodrigues se viu meio embatucado, dormir na casa do desafeto? Tanto falatório não recomendava confiança naquele indivíduo. Inda mais se ajuntado com gente da raça de Zé Emboaba, versado clavinoteiro, façanhudo, de quem se falava barbaridade. A suspeita de alguma esparrela perpassou insidiosa pelos seus pensamentos, e ficou lá, acantonada como numa tocaia, atazanando de leve sua desconfiança.
Mas não houve como. Ou pousava, ou voltava de mão abanando, o devedor não tinha outro expediente. Viagem à toa e trabalho perdido. Depois de servido o café, o acerto estava feito: assentiu que ficava, dormia lá, e se ia de manhã, com a parte que pudesse do dinheiro que viera buscar, que nenhuma quantia é indivisa.
Depois da janta a conversa foi ficando rala. Tinham pouco a se falar, o que havia de ser dito, já dito estava. Convidado a ouvir rádio, meu pai se disse cansado, se escusou e preferiu dormir cedo, se perdoassem o incômodo. Se recolheu ao quarto que lhe fora destinado, roupa de cama limpa, cheirando a alecrim e a alfavaca-do-campo, convidativa de um bom sono, o corpo cansado pedindo pra se estirar no macio da cama. A inquietação, porém, era mais forte que isso. Ficou atento aos ruídos da casa, inda percebeu Dito Lúcio, o barulho pesado das suas botas, andando pela casa como se arrumando coisas, dizendo à mulher e às meninas que dormissem no quarto mais ao fundo. Ele dormiria ali, ao lado do visitante
Seu Rodrigues arrastou com cuidado a cama, pondo-a de frente para a porta, favorecendo a sua visão. Sentou-se na beirada da cama, recostou-se na guarda, o revólver no colo, ao jeito da mão. Não ia dormir, apesar do cansaço. Não passou a chave na porta para não demonstrar receio. O tempo custava muito a passar. Seu Rodrigues vez em vez cochilava, os olhos pesados. Via, de repente, Dito Lúcio invasor do quarto, abrindo a porta num solavanco, espingarda na mão, o sorriso branco, maligno, destacado no escuro da cara. Seu Rodrigues via-o gigantesco, no recortado da porta, e espremia o gatilho do revólver, tentava desfechar tiro, mas o tiro não saía. Acordava assustado, suando apesar do frio. Foi assim durante a noite inteira, desvarios, comprida noite de agosto, morreu várias vezes durante o sono, estendido na cama. O desgraçado revólver não funcionava, ao menos em sonho. Amaldiçoava o turco em pensamento.
De manhã, madrugada, espertou-se lavando a cara na gamela de água que havia no quarto. Pôs a cara pra fora e sentiu o cheiro forte de café. Dito Lúcio já estava de pé, cumprimentou-o já convidando para o café. Saíam daqui a pouco. Quis saber se meu pai dormira bem, se sentira frio, naquele mês de agosto o vento era um incômodo, entrava pelos debaixos das portas. Meu pai, atinando que havia alguma outra intenção na pergunta, disse que nem vira, que dormira a sono solto em boa cama. Mas sua cara não expunha isso, noite em claro, de vigília e sonhos ruins.
Saíram ainda cedo, e bateram no rumo do sítio de Zé Emboaba, que ficava a coisa de légua e meia. Fosse arapuca, o trabalho ia ser dobrado, berrava bala em dois, em vez de um, já que assumira esse risco – pensou sério seu Rodrigues, enquanto troteava em silêncio ao lado de Dito Lúcio. Tocaram nessa marcha quieta por um bom tempo, margeando o rio, levantando poeira, tempo seco, a beira da estrada coberta de fino pó, sufocando o mato que viçava teimoso em meio a tanta secura. Contornaram inteiro um morro comprido, quase voltando, entrando numa ravina. Vez em quando, sobre a cabeça bandos de maritacas recém saídas do pouso, um alarido. Longe longe, um pixarro com sua cantilena morrendo, um vagido triste de pássaro abandonado. Paisagem seca, gadaria cavoucando o pasto em busca de verde, uma tristeza só. Angicos desgalhados, sem nenhuma folha visível, como mortos em meio à cerração pesada. Única beleza, uma peúva florida em atraso, cacheada de flores amarelas. Subiram devagar pelo caminho estreito e pedroso, enfileirados, meu pai ficava para trás por medida de cautela. Seguro morreu em cama, nenhum descuido.
De repente, um altiplano, como que um insuspeito espraiado naquelas alturas, abriu-se na frente deles. Estavam chegando. Longe se via, num rebaixo do terreno, um mangueiro, casa, e capineira ainda amarelada pela geada do mês passado. Enfim, chegados. Zé Emboaba terminava de aprontar o leite para mandar de carroça pro ponto. Saudou de longe, reconhecendo o compadre, a mão em pala tentando divulgar quem vinha junto. Aprochegaram-se, meu pai saudou o homem com um movimento de cabeça, não desapeou e nem estendeu a mão. Avaliava, antes de tudo. Normal seria se perguntarem da família, de como iam indo, as praxes de visitas. Mas, Dito Lúcio foi logo apresentando meu pai como um cobrador, e aquilo foi o suficiente para anuviar a cara de Zé Emboaba. Seu Rodrigues sentiu que não era bem-vindo, mas sustentou o olhar do outro, que parecia inquirir se não era muito topete aparecer assim, por ali, com exigências. Dito Lúcio, no entanto, sentindo a tensão no ar, tratou de desfazer qualquer mal-entendido clareando a situação, que meu pai o servira em hora de necessidade, agora vinha buscar o que de direito e de fato lhe pertencia. Zé Emboaba desanuviou um pouco o semblante, mas nem por isso sorriu, nos olhos uma expressão ruim. Se havia algum entendimento entre Zé Emboaba e Dito Lúcio, a coisa estourava agora, pensou seu Rodrigues, a mão pronta dentro da capa. Dito Lúcio ampliou as explicações informando que da sua parte a vontade era pagar o devido, mas para isso dependia do compadre, se não fosse incômodo adiantar o que haviam acertado. Houve um silêncio demorado ao fim do qual o homem entrou na casa e voltou com um maço de dinheiro enrolado num lenço.
Meu pai suspirou aliviado. Por obra de alguma graça, nada de pior se fez necessário. Zé Emboaba, desde o princípio desconfiado, mal mirava meu pai. Disse que, por pura sorte, dispunha daquele dinheiro, produto de gado inda há pouco vendido. Senão, como seria solvida a dívida? A pergunta ficou no ar, balançando, sem nenhuma réplica de parte a parte. Mas todos sabiam como, era escusada a resposta.
Foi quase um conto de réis que Dito Lúcio passou direto às mãos de meu pai. Seu Rodrigues enfiou o dinheiro na guaiaca sem nem ao menos contar. Um tostão que fosse, ele tinha de levar. Não era questão de quantia, mas de preceito. Despediram-se ali mesmo, que meu pai seguia caminho. Rejeitou o formal de ficar para o almoço, que tinha léguas e léguas para andar. Na volta, veio pensando no seu exagero, se não se excedera em cuidados. Afinal, fora tratado com fidalguia, até que bem recebido, a dívida em parte paga, nenhuma ofensa ou desfeita. O saldo prometido para o mês. Mediante a boa disposição do devedor, dilatara o prazo, pagava o restante quando pudesse, porquanto corressem os juros avençados. Cortesias à parte, no fundo, sentia que não encontrara resistência nenhuma, que o homem não era tão severo quanto diziam. Ou teria sido a sua firmeza que embaraçara a oposição dele? Isso nunca saberia…
Chegou em casa de tarde, empoeirado da viagem. Todos apreensivos. Sorriu satisfeito, liberando a todos de pensão ou maiores cuidados, e jogou o dinheiro na mesa. Tudo resolvido sem necessidade de desavença, na paz da civilidade, felizmente.
Grilo recolheu o cavalo, desarreou-o, passou-lhe a rascadeira ao comprido, de leve, jogou-lhe água no lombo e serviu farta ração de milho, enquanto eu olhava. Me disse, daquele seu jeito, jogando o arreamento no cavalete, que meu pai era corajoso, até temerário, que a homem como Dito Lúcio não se fazia aquilo assim, de tal modo. Entretanto, reconhecia, ir à cova da onça, se bem que arriscado, era ato que impunha o devido respeito. E isso valia.
Depois, antes da janta, dia inda claro, meu pai se propôs a comprovar a serventia do revólver no terreiro defronte da casa. Dispôs a curta distância uma acha de candeia, fez mira fina, e espremeu o gatilho. Uma, duas, três vezes e … nada!
A arma, tão vistosa e ajeitada, simplesmente falhava. Negava fogo, imprestável!
Ameaçou arrojá-la no rio, mas pensou: ou o turco lhe devolvia o dinheiro, ou lhe dava no lugar um Esmite, um Colt, alguma de boa fama.
Que Grilo nem soltasse Maranhão ao pastejo, deixasse o animal a jeito. Noutro dia iria à cidade, só para isso.