“Prezado João: primeiro, me desculpe se não o trato por meu amor, afinal não é surpresa para nós que você não mais me ama. Eu continuo com o mesmo amor de sempre, mas como você não me procura há mais de um mês e nem atende meus telefonemas, jurei que jamais iria chama-lo de meu amor. Você sabe ler o coração de uma mulher? Se sabe, não dá mostras disso, parece não conhecer os sentimentos femininos. Somos frágeis, é verdade que só até onde queremos, mas somos frágeis, sim. Você abusou da minha fragilidade. Pensa que pode me abandonar, assim como abandona um livro que não quer mais ler? Assim, como se o texto deixasse de ser interessante e passasse a ser tedioso. Acha que pode dobrar uma orelhinha na página tediosa e, um dia, quem sabe, retomar a leitura? Pense numa noite qualquer, de insônia, quando não tiver nada para ler, a não ser o livro com a orelhinha. Você, João, vai procurar na estante e não vai achar. Aprenda a ler o coração feminino, não se faz uma orelhinha no coração de uma mulher”. ( A tarde morria, lentamente, o ocaso visto da areia de uma praia deserta torna-se lento. Todos os movimentos e pensamentos são lentos, nessa hora. De mãos dadas, caminhamos, eu e ela, para o nada. Nada de gestos, nem palavras, nem lembrança da agitação das nossas vidas urbanas.
Falávamos pelas mãos. Descobri, nesse dia, que as mãos falam, declamam poesias, cantam versos amorosos, éramos poetas sem escrita, sem fala, poetas das mãos. O nada era a ausência de objetos físicos, palpáveis, mas era um tudo de suor, de olhares. Quando a noite chegou, vieram as palavras, poucas, algo que pretendia ser definitivo, alguma frase mais ou menos como não me deixe nunca, ou não sei viver sem você. Frases banais, sem poesia. O que importa é que fizemos um trato definitivo, imortal, com as mãos). “Não me importo mais se você é meu amor ou não. Durante sua ausência ou fuga, chamo de fuga, dou o nome que quiser, meu corpo machucou muito, dá para ver nos olhos, na boca, em tudo, acho até que emagreci uns quilos, e me ofendeu dentro da alma. Fui até conversar com o padre Antonio, aquele da paróquia que você não gosta, pedir conselhos. Falei para ele que estava me sentindo feia. Ele foi atencioso, falou alguma coisa assim que o corpo era só o receptáculo da alma. Na hora até parei de chorar, mas depois lembrei que você ofendeu minha alma e machucou o receptáculo dela. Algum dia, quem sabe, posso perdoar, mas agora não posso, João, estou muito magoada”. ( Era a mais bonita das moças que trabalhavam no banco. Era caixa, depois passou a auxiliar na gerência. Eu a via todos os dias, ia ao banco a serviço da empresa. Ficávamos nos olhando, à distância, o tempo parecia parar. Quando a convidei para sair, ela aceitou de pronto. Achei que não ia aceitar, mas aceitou, desprezou os outros que também olhavam e aceitou.
Jantamos, conversamos muito, bebemos um pouco e eu a levei para casa. No outro dia já éramos namorados. Não falei que era casado, achei que não era hora, quis esperar um pouco, uns dias. E se ela não quisesse mais me ver? Esperei muitos dias até contar, uns três meses. Quando contei foi um choro só, uma briga danada, ela jurou que estava tudo acabado. Fiquei uma semana sem ir ao banco, até que ela telefonou. Choramos os dois e recomeçamos, parece que eu tinha tirado um peso das costas, mas não, tinha é arrumado outro peso para carregar, pois ela me fez prometer que eu pediria a separação). ”
Sabe como é o sol nessa cidade? Ele aquece, clareia, ilumina o dia, deixa tudo tão bonito, os edifícios, os carros, a gente, tudo num tom tão amarelo, bem claro. Quando os olhos da gente começam a acostumar, gostar disso tudo, ele some, assim sem aviso, sem nada, a cidade fica cinza, escurece, os prédios, carros, o povo, tudo cinza e triste. E dá uma impressão quase certa que o sol nunca mais vai voltar. É o que você fez, ingrato, clareou minha alma, iluminou meu coração e aqueceu meu corpo. Depois foi embora. Tremo, João, não sei se de raiva, de medo, ou do frio que você deixou em mim. Nem choro mais lágrimas, choro cinzas, frias cinzas, como que querendo acabar com alguma coisa que trago dentro, um restinho do sol que você foi um dia. Eu sou cinza, o mundo é cinza, você é cinza, João!” ( Já escrevi uns versos, um poeta de versos ruins, que, de péssimos que eram, terminaram no lixo. Toda minha produção literária no lixo. No restaurante, quando saquei a carteira do bolso do paletó, o papel traidor, com os últimos versos que escrevi, caiu aos pés dela. Ela leu umas linhas que, se me lembro, diziam alguma coisa como: sou um pouco como o sol dessa cidade, que beija sua pele, aquece e ilumina, mas sou um louco, que de tanta ansiedade, te repele, esquece e abomina…Ela rasgou o papel e queimou. Eu olhava as cinzas e via mais uma produção literária sumir no cinzeiro. Como fazer essa mulher linda, encantadora, carinhosa, dedicada, entender que meu coração estava dividido em partes desiguais? Como explicar que meu sol maior estava em casa? Esperando o barulho da fechadura para se levantar do sofá e me beijar ansiosa, servir o uísque diário, contar e ouvir banalidades cotidianas. Depois, no jantar, falar das novidades do bebê, quase falou papai, um quase mamãe, aprendeu a estalar os lábios, parece que quer beijar… Não, ela nunca iria entender que era meu sol menor, mas ainda assim, um sol. Tinha um jeito de deitar, nua, de bruços, o rosto no travesseiro me fitando, os olhos falando vem, o corpo quente, o suor em gotas na nuca, gosto que senti mil vezes. Não queria sentir o gosto de lágrimas, queria o sabor do suor nas suas costas). ” Um mês. Não, são exatamente trinta e dois dias. Sei a data do último dia que estivemos juntos, está na receita . Lembro da sua reação quando o médico confirmou minha suspeita. Grávida. Já viu um réu ouvindo a sentença do juiz? Pena de morte, foi o que você ouviu. Nem sei se comprei o remédio contra enjôo para mim ou para você. Você passou mal, quase desmaiou. Depois quis reverter a sentença que o juiz deu. Isso mesmo, infeliz, queria pena de morte para nosso filho! Como pôde? Abortar nosso amor. Amor não se aborta, quando morre é por si mesmo, de morte natural, não por assassinato. Você é louco, João.
Louco, como naquela poesia ruim que caiu do seu bolso. Sempre pensei que os loucos fossem corajosos, mesmo que de uma valentia involuntária, por perderem a noção do perigo. Mas você é um louco que quer parecer são. É um homem perigoso, porque é um louco covarde. Sei que acha engraçado quando me ponho a pensar. Não tenho cultura como você, mas sei que as palavras do padre estão certas, aquela história do corpo e da alma, meu corpo é um receptáculo da alma, mas, também, recebeu e acolheu seu amor. E, do seu amor, vai fazer nascer outro corpo e outra alma. Só uma mulher entende isso tão bem. Vou criar esse filho, João, sozinha”. ( Poucos homens sabem como é a felicidade estampada no rosto de uma mulher quando confirma uma gravidez. Já vi a cena duas vezes. Na primeira vez, sem surpresa. Esperávamos e queríamos o filho, a qualquer momento viria, era o fruto natural, semeado durante muitas noites. Ouvi a boa notícia sem medo, feliz, orgulhoso. Vi crescer na barriga dela, acompanhei e cuidei. Da segunda vez, senti medo, nunca pensei em filhos com a amante. A alegria passeava no rosto dela, tive mais medo ainda dessa felicidade. Pareceu-me falsa, assim como se existisse uma felicidade não oficial. Era a mulher falsa, o amor falso, o filho falso. Um pesadelo que se torna real. Um sonho ruim a gente tem que esquecer, não posso crer que um pesadelo tenha o poder de transformar minha vida. O homem defende sua família, se preciso, matando, aniquilando os inimigos. Não há covardia em defender seu lar, suas conquistas. Se existe alguma loucura nisso, é a loucura do valente ). ” Não quero nada, João. Acho que quero dizer que quero o mesmo nada que recebi até hoje. Peço que não tenha ódio do meu filho, não pense em nós como inimigos da sua felicidade.
Gostaria de reve-lo mais uma vez, uma única e última vez, olhar nos seus olhos e dizer adeus. Por isso, e só por isso, é que tenho procurado por você, tenho telefonado e insistido tanto. Se leu esta carta até aqui, não amassou e jogou fora, é sinal que ainda resta um pouco de amor, um mínimo de atenção. Venha João, venha até aqui. Espero, com a promessa de nada pedir, nada querer”. ( Estou aqui, sentado em sua cama, ao seu lado, relendo esta carta pela última vez. Ela dorme nua, nem acordou quando entrei, nem notou minha presença. Basta atuar conforme o ensaio. O travesseiro em seu rosto, firme, não sentirá quase nada, a não ser a força de um homem de coragem, matando um pesadelo).
– É você, João? ( Não! Ela acordou, seus olhos brilharam, virou e deitou de bruços).
– Vem, João, do jeito que você mais gosta. ( Ela tem um jeito de deitar, nua, de bruços, o rosto no travesseiro, me fitando, o corpo quente, o suor em gotas na nuca e nas costas… ).
Escrito por Mário Jaccoud