Matéria de Sonho

Lentamente amanhece.
E se a infância viesse até ela outra vez?
E a infância vem, atendendo a seu anelo.
Vem, não se sabe de onde, talvez de dentro.
Vem, e feito aquele pássaro que regurgita de si o alimento para saciar a fome das crias, coloca em sua boca a matéria viva de memória . E ela torna-se então seu próprio sonho.
Memória…um retornar sobre os mesmos passos .Pegadas quase diluídas em terra antiga. Resgate de paisagens cobertas de neblina ,iluminada as vezes por relâmpagos de medo.
Território onde se misturam inconfundíveis sons e cheiros .Espanto e descobertas.
E assim, se tece, vagaroso o conhecido enredo. Poderá mudá-lo? Tenta, se desnuda, queima aquelas vestes impregnadas de vivências. Em vão. As cinzas que delas resultam, grudam novamente em sua pele e refazem a mesma roupa. E entre luzes e sombras ela caminha.
Entre dias e noites, e sobressaltos repassa aquele instante de sua vida: um pássaro raro, voando rumo ao sol…e o amanhecer tão longe ainda…E se fugisse? Mudasse o itinerário? Colorisse as penas? Alongasse as asas?
Afinasse o trinado? Como se faria seu destino? Conseguiria ser aceita pelo bando?
Pensa e prossegue em seu solitário vôo: ali, campos de trigo, rios , montanhas, um vale imenso… ,depois vilas, casas, jardins de dálias e abelhas .E um avô sentado, embalando um sono de criança… E ela pára e observa aquele quadro , e uma ternura ímpar a envolve. E , naqueles cabelos claros e ralos se reconhece. E sua alma, pela primeira vez se aquece. Um céu lento e azul instala-se em nuvens de silêncio e todo o medo se dissipa. E o pássaro se aninha também naquele colo, e se dilua naquele amor.
E lentamente amanhece, e a infância resgatada, dorme tranqüila em seu colo.
E tem olhos azuis.