Nenhum problema hoje. Nenhum desejo em especial. Não estou alegre, nem triste. O que me deixa um tanto embaraçada. Se eu estivesse sob os cuidados de um psicólogo, hoje teria alta. Logo, imagino que deva ser esse o estado que todos almejam. E eu que já menti tanto para ser igual a todos, que já menti tanto para ter a mesma opinião que todos, sinto-me frustrada.
A asserção concordada entre a maioria, gera discussão, vira best-seller, torna-se tema de programa para TV com opiniões de artista bonitos e sorridentes comungando, publicamente, dos mesmos ideais. Aí a gente se sente tão pequena que nem adianta ir contra. E de tanto ver e ouvir acabamos nos moldando a tais idéias, adequando-se às situações ou, como diz o dito popular: água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Foi assim, nesse ritmo de goteira, que me convenci de que era melhor ser parecida com os outros, ou seja, equilibrada. Ora, que coisa mais tola. Esses sentimentos ordenados me cansam. Prefiro a minha desordem mental ou aqueles pensamentos que me trazem insônia, me enlouquecem, ainda que eu nunca vá ceder a seus caprichos. Prefiro, também, minha vontade insana de gritar.
Existem pessoas que nunca tiveram vontade de gritar. Meu pai nunca gritou. Nem meu avô, pai dele. São as pessoas mais equilibradas que eu conheço. E eu sinto pena deles por isso. Minha mãe gritava. Hoje já não grita mais, foi ficando equilibrada. Acho que depois de uma certa idade a tendência é um temperamento mais acomodado e definido. No entanto, sinto saudades dos gritos dela, principalmente à tarde, quando ela enchia os pulmões de ar e com um fôlego de cantora lírica, descarregava todo o peso do dia: menina, vai tomar banho! E isso não era uma metáfora. A frase obedecia o sentido exato do pedido em questão. Só não compreendo, ainda hoje, porque ela não dizia “venha” ao invés de “vai”.
Talvez seja por puro desconhecimento das regras gramaticais ou, queria dizer algo nas entrelinhas. Certo é que, minha mãe não perdeu a chance de gritar, nem de chorar. Ela chorava enquanto cortava cebola. Creio que todas as mães aproveitam pra chorar enquanto cortam cebola. “Chorar é esvaziar-se de si mesmo.” Parece frase de psicanalista? De Freud? Pois é minha mesma. Arranquei-a de dentro da minha alma enquanto cortava cebolas. Também sou mãe e uso dessas artimanhas porque tenho vizinhos próximos. Pobre de mim que não posso gritar quando tenho vontade. Pobre dos meus vizinhos que não podem gritar porque eu moro próxima. E outro dia a vizinha me perguntou se eu não havia acordado, à noite, com os gritos da filha. Coitada da menina, nem tem lugar para gritar. Culpa da mãe que mora de parede-meia e diz que grito é coisa do inferno. Ai que horror, dizer isso para uma criança! Que horror criar a geração do cochicho! E eu queria pegar essa menina com todas as suas expectativas estancadas e colocá-la num balanço com assento de pneu, daqueles de correntes, que dá um frio na barriga, e ouvi-la gritar desfazendo o nó do peito, desatando as proibições e a pontuação que prende a vida.
Mas isso é coisa pra gente desequilibrada. Gente que se modifica a cada lua, a cada sopro, a cada vento. Gente que ousa virar os olhos mesmo quando dizem que uma corrente de ar provoca estrabismo. Gente que reage estranhamente às vicissitudes da vida. Gente que ri, chora ou faz os dois ao mesmo tempo. Gente que é feliz e nem sabe, gente que não descobriu que esse equilíbrio emocional, essa sensatez das coisas todas no lugar, tem um gosto insosso e duvidoso. Tem mesmo.