Estivesse a Patrícia, a primeira representante da nova geração no meu ambiente de trabalho, totalmente certa ao me ver pela primeira vez de brinco e dizer: “Isso é coisa de viadinho” e nada mais precisaria ser dito.
Não seria do meu feitio dizer imediatamente, sem apresentar argumentos, que ela estava totalmente errada. No caso, uma demonstração não verbal poderia ser mal interpretada ou, muito pior, bem interpretada. Mais valeu-me calar, rir e observar outras reações.
Elas não tardaram. No geral, os amigos da minha idade tiveram reações parecidas. Os homens emitiram opiniões vagas, no fundo concordando com a primeira opinião. As mulheres disseram que era bonitinho, depois de um sorriso irônico. Nem todas poderiam concordar plenamente com a Patrícia, pois alguns de seus ídolos, jovens surfistas de verão, devem portá-los. Minha esposa não gostou. Disse que há dez anos quis que eu usasse brinco e eu me recusei. É verdade, mas há dez anos minha filha Gabriela, então com um ano de idade, não poderia ter duvidado que eu o portasse, nem poderia ter-me ajudado na escolha do modelo em argola, de encaixe, sem necessidade de perfurar a orelha.
A reação da minha família foi a esperada. Aquilo era demais para um mineiro do interior com fama de machista. A Edna, minha cunhada, me olhou, se aproximou do meu rosto, olhou atentamente o brinco e disse “Não acredito! Ah se o “Seu” Solon visse isso!… Sérgio, Sérgio, vem cá ver a orelha do teu irmão!”. Meu irmão entrou na sala, me olhou e disse “Não estou vendo nada. Não me comprometa”. “Seu” Solon é meu saudoso pai. Tenho certeza que ele faria um não de reprovação com a cabeça e, antes de se retirar, ajeitaria os óculos sobre os olhos e diria apenas: “Essa não!!”. A minha mãe me deserdaria. A reação mais inusitada foi a de meu sobrinho Jonaã de 17 anos: “Tio, o senhor está empolgado, hein!”. Sua irmã, Tanaê, riu por um bom tempo e tentou me convencer a perfurar a orelha em casa, com uma receita infalível que incluía anestesiar a orelha com uma pedra de gelo. Não concordei. Minha afilhada, Mayara, apenas me disse que o seu brinco era mais bonito. As reações dos demais familiares se dividiram entre surpresa, piadas e reprovações.
Devo dizer que a Patrícia não estava totalmente errada. Descobri quase um mês depois. Ao comprar um isqueiro, a vendedora escolheu a cor dizendo que era a mais masculina que ela possuía. Por coincidência, no mesmo dia, num dos bons momentos que a vida profissional me proporciona, fui ao Café Promenade acompanhar a professora Maria Creusa (ou professora doutora Maria Creusa, como diz seu cartão) num jantar. Ao pagar a conta, a Márcia, gerente do local, me olhou com censura e perguntou “Que história é essa?”. Fiz-me de desentendido: “O que foi?”. “Você já não tem idade para essas coisas…”. “Não sei de que coisas você está falando…”. “A orelha direita não é orelha que homem use brinco. Quem disse foi minha filha…”. Entendi o que a Patrícia quis dizer com sua frase um mês antes e a vendedora com a cor do isqueiro. Mantive a calma, acendi um cigarro e argumentei que sou canhoto inveterado. Mas não consegui um bom contra-argumento à idéia de que não se vê isto numa primeira olhada. Ela vencera. Mudei o brinco de orelha com a aprovação da professora Maria Creusa. Só não puxei a orelha da Gabriela, que deveria saber disso e ter me avisado, por medo de puxar a orelha errada e isso ter segundas interpretações.
Na verdade, só estou usando brinco para me divertir com os falsos ou verdadeiros preconceitos dos que me cercam. Até agora consegui. Mas continuo sério, tanto que precisei para mim mesmo teorizar um pouco sobre o assunto. Pensei nos piratas e nos ciganos.
Talvez os antigos piratas marítimos usassem brincos e outros ornamentos como um símbolo de revolta. Eram excluídos pelo então sistema de comércio ou, apenas, seguiam clandestinamente ordens de mandatários que preferiam manter-se incógnitos. Mesmo no último caso, representavam as falhas dos costumes então vigentes. Não sei se usar brinco ainda é costume nos atuais piratas da informática. Os atuais piratas ainda guardam um pouco do romantismo de seus ancestrais. Mas, em alguns casos, ainda há poderosos mandatários que, sem uma única idéia inovadora, tornam-se os homens mais ricos do mundo. Que ninguém aprenda com esses vencedores. Que meu brinco não tenha nenhuma relação com eles. Se for preciso formular alguma relação do meu brinco com piratas, que seja antes com os antigos piratas ou com os novos que admirem os antigos.
Os brincos lembram também os ciganos, cuja cultura admiro. São incapazes de se contentarem com a posição onde estão. Não param, procuram lugares melhores. Abrem mão do conforto de um acampamento montado para seguirem adiante. Além disso, suas mulheres podem ser fatais. Fatais como a Carmen da novela de Mérimée, mais conhecida como aquela da ópera de Bizet que inspirou. Porém o comportamento cigano é utópico para os dias de hoje e o uso de um simples brinco não leva até ele.
Fazendo jus à minha fama, fiz aquilo que alguns esperam de mim: Fui a um livro buscar a simbologia do brinco. Por coincidência, a simbologia do brinco está ligada àquela da argola, forma do brinco que porto. Por sua vez, a simbologia da argola está ligada àquela da fivela que, quando fechada, significa autodefesa e que, quando aberta, anuncia uma liberação. Meu brinco é uma argola fechada que vive se desencaixando da minha orelha. Por várias vezes quase o perdi.
No mesmo livro, descobri que a simbologia do brinco em argola se aproxima daquela do uróboro. Fui ver o que é isso. É uma serpente que morde a própria cauda. Descubro que este símbolo contém as idéias do movimento, da auto fecundação e do eterno retorno. Assim, ao mesmo tempo, reencontro Valéry e Nietzche! Paul Valéry usou o uróboro (bela palavra!) como símbolo do repensar em seus Cadernos, em grande parte escrito quando ninguém imaginava que ainda escrevesse. Prefiro ver neste símbolo a autofecundidade do seu pensamento. A idéia do eterno retorno de Nietzche, aquela que diz que num futuro inimaginável você estará lendo novamente este texto como se fosse a primeira vez, é tida como exemplo de seu pessimismo. Alguns atribuem seu pessimismo à sífilis que o levou à loucura nos últimos anos de vida. É mais fácil considerar algumas idéias apenas loucuras de seus autores. Sinto vontade de reler Valéry e Nietzche, não os leria como os li há anos.
Soube ainda que os chineses, através da idéia do movimento, associam o uróboro ao Yin-Yang taoísta e que os antigos povos do norte da África vêem nos brincos uma representação do órgão genital feminino. Nunca pensei portar tanto na orelha!
Divirto-me com o brinco. Deverei portá-lo enquanto me divertir com ele. Pensem o que pensem, divirto-me e, brincando, paro um pouco de pensar.