Hoje, eu sei, é dia perdido.
Procuro juntar uma a uma as muitas lembranças de que sou dona, mas só me vêm à cabeça os movimentos da Sinfonia 40 de Mozart, você conhece?
Quando entristeço assim, de repente, esta sinfonia me invade por dentro e então eu sei: o jeito é ouvi-la por fora. Procuro e cedê, não encontro. Melhor mesmo é fechar os olhos e ficar tentando ouvir lá dentro, na cabeça, no fundo do meu coração.
Saltam muitas lembranças enquanto acompanho o ritmo desta Sinfonia 40, minha preferida desde a infância. Acho que desde a primeira vez que ouvi música clássica, esta é minha preferida. Com ela, o mundo são violinos a tocar, aprendi de meu pai esta frase. É isso: com Mozart, o mundo são violinos a tocar…
Hoje, eu sei, é dia perdido.
Fico perdida aqui, enovelada em lembranças, enrolo meus pés nos fios das lembranças e me vejo de repente na casa grande e silenciosa de meus avós paternos. Uma mesa posta, havia croissants, chá preto. E orquídeas tão lindas explodindo roxos e amarelos… Tudo lá era tão limpo e fresco, havia uns bibelôs pequeninos e delicados e cactos plantados “em dedal”, expressão usada para indicar que eram vasinhos minúsculos (e eu procurando os dedais, sempre, dedal é objeto da caixa de costura do tempo em que fui menina…).
Minha avó tinha os cabelos pretos, um rosto determinado, um jeito bom de ser. Meu avô era um homem elegante em seus ternos e gravatas, camisas bem passadas. E havia os livros, num quarto cheio de estantes e de janelas baixas. Eu me sentava ali, com um livro ou revista no colo e passava horas lendo, olhando pra fora (que paisagem a desse quarto: uma videira, um caminho cercado por pessegueiros e uma gigantesca mangueira ao fundo… um muro onde havia uma trepadeira com flores azuis. E eu comparava esta casa ao que tinha visto em O Mágico de Oz…).
Eu olhava aquela paisagem vista da janela e imaginava que naquele lugar caberiam 200 meninos ou mais, todos correndo e dando gritos, subindo na mangueira, andando pé ante pé por sobre o muro, por um triz cairiam do outro lado.
Hoje, eu sei, é dia perdido.
De repente, na minha cabeça surge a frase: só podemos encontrar na vida o que verdadeiramente buscamos dela…
Encontrei?
Talvez tenha encontrado há um ano exato, talvez nunca tenha encontrado, eu não sei.
O certo é que Mozart toca para mim sua Sinfonia 40 e eu carinhosamente ponho na moldura, como um retrato, as lembranças mais felizes de que disponho.
Prego na parede, dependurando nela a vida, como se a vida pudesse estar assim, num varal, ao sol.
Na parede do mundo, onde dependuro a minha vida, há transparências e heras. E muito sol. Tanto, que me fere os olhos. E ainda olho a paisagem simples onde havia, se não me engano, jabuticabeiras e seus lisos caules. Imobilizadas no sonho, lá estão minhas mais fundas lembranças de menina, a que um dia fui. E esta crônica é isso: um depósito de saudades, um quarto do qual não se abre a porta, uma porta que guarda este quarto do resto do mundo que é de ninguém mais, só meu.