O sino da Velha Torre,
Meu amor, chama por mim …
Quando um estudante morre
Os sinos tocam assim …
Oh! Quem me dera abraçar-te
Contra o peito, assim, assim …
Levar-te a morte e levar-te
Toda abraçadinha a mim!
Minha capa vos acoite
Que é pra vos agasalhar:
Se por fora é cor da noite,
Por dentro é cor do luar …
Oh! Quem me dera abraçar-te
Contra o peito, assim, assim …
Levar-te a morte e levar-te
Toda abraçadinha a mim!
(Fado D’Anto. Letra de António Nobre, música de Francisco Menano)
Tenho um mapa da cidade aberto à minha frente, onde meus dedos se locomovem para acompanhar a agilidade do pensamento, que percorre cada rua de memória, como se desenhadas no coração. Basta fechar os olhos e voltar um tanto no tempo, com a distância e a saudade a apertar mais forte as pálpebras para conter inevitáveis lágrimas. É o que faço a partir de agora.
Saímos de Leiria às nove da manhã, com o ônibus expresso para não perder tempo em deslocamentos. Deixamos as mochilas no albergue esquisito e lotado, no lado direito da rua, subindo a colina íngreme. Guardamos os passaportes no cofre, pegamos o mapa e fomos a pé para o Largo da Portagem, com diversas paradas em lugares deslumbrantes. Havíamos combinado encontrar lá uma amiga que vinha de Castelo Branco.
Abandonamos o mapa logo após consultar para que lado devíamos ir, contando, a partir daí, com nosso bom senso de direção. A sensação de desafio que lugares desconhecidos sempre provocaram em mim estava de volta, porque entre o ponto de partida e o de chegada não fazia idéia do que encontraria e era isso que transformava uma viagem em aventura.
O acaso nos colocou diante de uma escadaria larga, com uma quantidade tão considerável de degraus, que ficamos em dúvida na direção a seguir. O Largo, pela lógica, ficava bem à frente. Mas não fazíamos idéia do que tinha para além dos degraus. A rua batia neles e desdobrava-se para a esquerda e à direita. Nunca gostei de fazer o maior caminho para evitar obstáculos. Além disso, o céu além da escada parecia muito mais azul, forte indicativo de que o rio estava naquela direção. Então subimos, com uma ou duas paradas para “apreciar a vista” enquanto os pulmões se restabeleciam. Lá no alto, a surpresa. Diante de nós, imponente, a estátua do rei D.Diniz que, em 1920 fundou a Universidade, transferida em definitivo para Coimbra em 1537, por decisão de D. João III.
Sem imaginar, havíamos chegado à Universidade de Coimbra. Eça de Queiroz estudara ali. Tantos outros, ilustres e desconhecidos, que também contribuíram para o desgaste daquelas pedras ao longo do tempo. Emoção intensa ao caminhar pela rua larga, cercada de prédios dos dois lados, até chegar a Porta Férrea. Ao transpô-la, entramos no mundo mágico do conhecimento, dos rituais acadêmicos, da história. Estávamos no Pátio das Escolas, rodeado por uma seqüência de prédios interligados, em forma de “U”, desembocando diretamente para o vazio, no alto da colina. Tudo tão bonito que os olhos eram poucos e a compreensão, menor ainda. Bem no meio do Pátio, uma escavação arqueológica recente e em andamento. Vestígios romanos, isolados dos curiosos por uma cerca. Emocionante.
Para chegar ao nosso destino, descemos uma escadaria estreita e bifurcada, vigiada do alto pelos olhos atentos da Estátua de Minerva, com uma fita branca sobre a cabeça, resplandecente contra o da manhã. Saímos da Universidade e descemos a colina, pelas ruas estreitas de casario branco e amarelo. A primeira vista do Mondego foi algo inesquecível. Surgiu após uma curva incrível como as coisas maravilhosas escondem-se todas atrás das curvas dos caminhos e foi uma visão inacreditável, de tão linda. Com águas mansas deslizando para debaixo das pontes, tinha a cidade inteira refletida na superfície lisa. Margeado pelas árvores e flores aos milhares, foi uma das imagens mais definitivas que guardei de Portugal. A ruazinha pela qual descíamos tinha roupas nas janelas, carros estacionados, pessoas conversando e, à sua esquerda, um muro pequenino que servia de descanso aos cotovelos enquanto o olhar corria de um lado a outro, maravilhado.
Após tanta emoção, conseguimos finalmente chegar ao Largo da Portagem. Local de lazer à margem do Mondego, com rua larga e movimentada, a tão famosa ponte dos cartões postais, vários bares e restaurantes, barcos e uma praça florida como poucas. É nesse local que os estudantes de Coimbra realizam a cerimônia da queima das fitas. E foi onde encontramos minha simpática amiga, no Café Montanha. Subiu a rua com um sorriso lindo entre os guarda-sóis vermelhos, dando-me vontade de dar as mãos a ela e sair pulando pela calçada, feito criança.
Iniciamos o passeio pela cidade, acompanhadas dessa amiga que é professora de História e a conhece como a palma da mão. Caminhamos pelas ruas medievais, fotografamos todos os arcos e cantos antigos e floridos. O que restou das antigas muralhas, a Torre D’Anto, a Sé Velha, a casa onde viveu Zeca Afonso! E sempre havia um fado solto pelo ar, aquele jeito de cantar a dor espalhado para onde quer que se fosse. Atravessamos a ponte e fomos admirar a cidade do lado de lá do rio. A imponência da Universidade é marcante sobre a vista geral, destaca-se magnificamente de todo o resto. Coimbra sobe e desce as ladeiras, debruça-se às margens do rio como uma senhora fagueira e reluzente de vida. Felicidade, pura felicidade.
A seguir, pegamos a estrada e fomos a Conimbriga, sítio arqueológico majestoso deixados pelos romanos. Com aquedutos, casas com pisos de mosaicos fantásticos, piscinas, jardins, tudo trazido à tona após escavações meticulosas, das quais minha amiga também fez parte e, ao contar-nos isso, deixou-me toda orgulhosa. O resgate de civilizações antigas é trabalho amoroso e persistente e eu, que sempre tive interesse e já havia passado anos nesse tipo de leitura, tive meu primeiro contato real com uma que existia há mais de dois mil anos. Foi estranho sentir a própria impermanência, enquanto admirava os objetos expostos no museu.
Continuando o passeio, paramos na fonte das sete bicas de Luso que, dizem, é a água mais pura de Portugal. Conforme a tradição, tivemos de fazer um pedido e beber um gole de cada uma das bicas que, contei, não são sete… mas nove. Com a barriga cheia d’água e o pedido feito – fiz um bem difícil – fomos passear pelos jardins e beber café no Palácio do Buçaco, que hoje é um hotel cinco estrelas saído de conto de fadas. Em uma das paredes externas, milhares de azulejos em azul e branco, retratando passagens de Os Lusíadas.
Iniciamos a volta à Coimbra, acompanhando o Mondego morro abaixo, passando por Penacova, onde tivemos, lá do alto, uma vista muito parecida com o vale do Rio das Antas, no interior do Rio Grande do Sul, onde o rio desenha uma ferradura. Provei a famosa Nevada, um doce feito de pão-de-ló, com recheio de ovos moles e cobertura de açúcar de confeiteiro. Doce demais, mas o café estava delicioso. Ainda descendo, paramos o carro na estrada verdíssima e caminhamos no asfalto deserto alguns minutos, para apreciar a visão privilegiada do rio, da mata e do fim do dia. Aquele lugar seria um forte candidato ao paraíso. Juntei duas pedras brancas de recordação.
Quando voltamos já era noite. Fomos jantar com mais duas amigas portuguesas, com direito a vista panorâmica. Na volta, paramos na “Boca do Inferno”, um mirante ás escuras na beira da estrada, de onde vimos a cidade esparramada em luzes para todos os lados. E o céu todinho recoberto de estrelas. Num momento desses, o único pensamento possível era de agradecimento. E foi assim que terminou nosso primeiro dia em Coimbra, com um muito obrigado aos céus.
Na manhã seguinte, saímos cedo as três, direto ao Penedo da Saudade, um recanto literário e amoroso pendurado na encosta, antigamente freqüentado pelos estudantes, que deixaram seus poemas gravados em pedras retangulares, espetadas entre bancos, fontes e flores. Depois o jardim botânico, onde encontrei a letra “E” desenhada com espuma, dentro de um chafariz. Se contasse, ninguém acreditaria. Então fotografei.
Mais tarde, voltamos à Universidade para a visita oficial. Continuava tudo lá: o campanário, que ainda guarda sua “cabra”, os prédios da Biblioteca, da Capela, do Museu, a Sala Grande dos Actos e a sala dos Exames Privados, o Colégio de S. Pedro. Primeira parada: Biblioteca Joanina. Estávamos nós e um grupo de franceses. Entramos, a porta foi fechada, os guias começaram as explicações, mas não ouvi nada. Percorri o pequeno espaço com olhos arregalados, suor gelado nas palmas das mãos. Conhecia aquele lugar. O cheiro dos livros antiquíssimos, o ouro nas prateleiras, os móveis escuros, até o grande quadro que dominava o ambiente. Faltou ar, os joelhos amoleceram e desandei a chorar no meio da biblioteca. Nem o abraço afetuoso de minha amiga ajudou, aí sim eu chorei mais alto, chamando a atenção de todas as pessoas. Foi emoção demais, felizmente ninguém me conhecia. Mas, sinceramente, eu pouco estava me importando. Depois daquilo, o resto da visita transcorreu meio em branco, fiquei sem forças e meio deprimida pelo choque inicial.
Após o almoço minha amiga foi embora. Partiu do mesmo lugar em que havia chegado. Observei o carro cada vez mais distante, seguindo a direção dos plátanos na estrada, a saudade antecipada transformada em lágrimas teimosas, escondidas pelos óculos escuros. A cada amigo que íamos deixando, novo peso no coração.
Aproveitamos a tarde para um passeio de barco pelo Mondego. Olhos ardidos que viam a cidade sob uma cortina de melancolia pela partida iminente, sempre aquela sensação de nunca mais. Finalmente, algumas caminhadas à toa pela cidade e a volta ao albergue. Estava emocional e fisicamente exausta, tomei um banho e fui para a sacada do nosso quarto mastigar uma nêspera, enquanto esperava a noite passar. No dia seguinte iríamos para o Porto.