Leio filosofia. Ouço Handel e escrevo direto no computador. Talvez eu esteja querendo me contrariar ou querendo deixar de ser prisioneira da caneta. Há pouco escrevi com ela uns versos tolos e me puni em seguida. Devia escrever menos. A caneta me deixa vulnerável. Traduz minha alma e desagrega a minha matéria. E a minha matéria é a sombra da minha alma. Não, hoje não vou falar de sombras. Até porquê, não há sombras por aqui. Só há meia dúzia de estrelas apagadas no céu. Melhor sentar diante dessa máquina fria e falar de coisas inúteis. A propósito, alguém sabe o que é o inútil?
Inútil, diria minha avó, é um beijo no rosto de um morto. Já concordei com essa teoria. Mas hoje me sinto tão inútil que não encontro argumentos para concordar com ela. De repente, o que achei que fui, não sou mais. É curioso não ser. A gente vai se libertando de tudo e vai ficando vazia. É como se o silêncio da eternidade fosse um filme mudo. Aí me vejo leve como uma folha seca que é levada pelo vento e não tem destino certo, nem errado, porque destino é coisa que não existe para quem está vazio. E isso me dá prazer. É bom estar livre do destino, soltar as amarras, livrar-se da carga difícil de ser uma pessoa, de ser o que pensam que você é. Porque às vezes não sou eu, sou a mulher que pensam que sou. E quando não correspondo com essa mulher, julgam-me imatura e infantil. Engraçado, isso não me incomoda. A imaturidade está intimamente ligada comigo. Acho que não sofri a dor necessária ao amadurecimento e por conseqüência, ainda tenho as reações mais elementares. Ora, tenho até crises de ciúmes. E quem não tem? Se alguém não tem, desconfie. Pois até Deus tem ciúmes. Deus também quer ser amado. E pede para que o amemos. Não é esse o primeiro mandamento? Porque eu, pobre mortal, vou achar que me basto a mim mesma? Claro que esse não é o caso de Deus, Ele se basta a si mesmo, mas ainda assim quer contar conosco. Não sei o porquê. Talvez porque amando a Ele conseguiremos amar ao próximo e conceder perdão. Quem ama a Deus, perdoa. Seria isso? Não sei. Nem quero pensar. Não sou uma pensadora. Hoje estou no meu vazio. E o vazio é impensável. O vazio existe por si só. Alguém pensou em criar um vazio? Mas ele existe. E você não tem como se livrar dele. Ele existe antes e depois. A terra era sem forma e vazia. Até Deus se deparou com o vazio. E a partir dele criou as formas. E o universo ficou mesclado com o vazio. E a minha vida também. E esta crônica, recém-nascida do nada, também tem lá os seus vazios. E dentro deles está o que eu não disse. Posso ver as palavras fazendo espirais em torno do nada. Razão pela qual não me preocupei em mudar de parágrafo. O que é um pecado mediante as leis que regem a produção de textos. Mas que tenho eu com as leis? Não escrevo palavras, gozo-as. E desconheço as leis do prazer. Devem ser sagradas. Exatamente por não existirem. O inexistente é sagrado. Isso está parecendo discurso. Quando penso estrago tudo. Quando penso deixo de ficar vazia e fico cheia de mim. Entretanto, continuo a ouvir Händel e observo um bilhete que recebi de um filósofo. Filósofos falam por parábolas. E esse, não fugiu à regra, além de desenhar uma roda, um copo e uma casa. Ambos habitados pelo nada. E depois concluiu: ser é utilidade, não ser é eficácia. Será que os filósofos também vêem a alma?
Não sei dizer. Mas já é tarde e tenho que dormir. Tenho que pensar. Tenho que viver. Tenho que pintar a cara e a alma com as cores do existente. E quando me deito na cama, sou mulher de alma encarnada, crio formas, embora no céu, meia dúzia de estrelas continuem apagadas.