Os Sinos

Os sinos badalam opacos, com a lentidão magoada que lhes corrói mais do que o tempo. Pendem, enferrujados e mortiços, do cimo de todas as torres do mundo e badalam, tristemente, as dores das criaturas terrenas. Alguém morreu. Quem?
As torres revestem-se, mais do que nunca, de fuligem, musgo, hera, liquens. O tempo age e revela rugas, nacos, fendas e descascares renitentes de tintas sobrepostas. De todas falta um pedaço, alguma coisa indistinta e bem presente. Algo se perdeu. O que?
Para além de sinos e torres, vive o céu azul. Que emoldura, desde sempre, torres. Que guardam, dentro de si, os sinos. Que badalam, badalam, badalam, badalam… O céu azul hoje está cinzento, frio, inóspito. Triste, como os sinos e as torres descascadas que ponteiam o mundo. Existe imagem mais triste do que essa? Uma torre contra o céu cinzento, sacudida em convulsões pelo latejar dos sinos que a habitam? Sim, existe.
Existe a garoa fina que recobre a cena, num gotejar mais perceptível às almas do que à pele, que envolve as torres e lhes penetra as tintas, as pedras e lhes mofa os interiores e enferruja os sinos. E o carrilhão, em suas frontes cheias de rugas, que marca o quarto de tantas horas distintas, na única melodia que se poderia ter num dia desses: tristeza.
O vento carrega as notas, os sons, até os que não houveram, em direção ao mar furioso que arrebenta ao pé do penhasco abrupto, após a torre. A fúria das águas tritura e transforma em espuma as coisas que a terra traz, que hoje é só tristeza e tanta, que cada arremesso se transforma quase em nuvem.
Quem morreu? O relojoeiro. Senhor do Tempo. Seu tempo. O homem que um dia, desiludido até da própria vida, fez daquele lugar deserto seu lar, despojando-se dos homens, das banalidades, das expectativas, das próprias ilusões. Foi ser livre e selvagem entre a fúria da natureza. Que lhe mostrava, diariamente, sua insignificância. Como mostrava o quanto imenso ele podia ser quando parava, de braços abertos, à beira do abismo, e oferecia o rosto ao vento e à tempestade. Então chorava, num quase êxtase, e ficava lá, imóvel, até o outro dia.
Seus únicos bens eram os sinos, a torre, o mar, o carrilhão. E um pequeno relógio de bolso que lhe marcava os passos. Os tique-taques imitavam seu ritmo cardíaco, mesmo compasso, numa interdependência estabelecida na mudança. Mas do homem faltava um pedaço, parte importante que não sabia distinguir. E o coração perdeu o ritmo e descompassou do relógio, cada dia mais, e mais, e mais, e mais.
Tinha o que necessitava para a vida, o que diabos lhe faltava que não havia naquele lugar? Fazia a pergunta ao mar, repetidas vezes, dia após dia, e nunca houve resposta. Chorava. Angustiado de uma dor que lhe doía em lugar algum e no corpo todo, ao mesmo tempo. E tudo aquilo que havia, céu, mar, sons e liberdade, virou pó. Foi quando ele esqueceu o relógio numa pedra, quando insistia em perguntar ao mar da sua sorte.
E o relógio parou. O relojoeiro desapareceu. O mar explodiu contra as pedras, transformando-se num turbilhão de espuma. O céu anuviou-se e tingiu de cinza, para sempre naquele lugar. O vento fez badalar os sinos. O carrilhão deixou de marcar o tempo e iniciou um lamento interminável. Tristeza sem fim. A garoa iniciou a lenta decomposição do quadro, transformando-o num borrão indefinível.
Ninguém garante que existiu. Se houve, não poderia ser diferente. Ele vivia ali, onde hoje está o céu cinzento, a torre antiga com os sinos. Onde o carrilhão, parado, toca sempre a mesma canção desesperada. Sobre um penhasco à beira do oceano, de onde se avista o mundo, ponto de partida e chegada, lugar nenhum. Você saberá, quando ouvir os sinos e sentir a mesma tristeza.