Hoje, ao olhar para trás, vejo que me preparei a vida inteira para o que aconteceu. Isto é, desde que me dei conta de que pertencia ao sexo feminino… Só não sabia quando aconteceria. Que se tornaria realidade, em meu íntimo, nunca houve dúvida alguma, pois sou mulher com todas as vaidades, todas as qualidades e todos os defeitos que isso significa.
Perdi a conta das vezes em que quase o fiz… Até que o controle da situação escapou-me por completo. Ora, uma vez descontrolada, cair na tentação foi uma mera questão de ajustes espaços-temporais.
Recordo ter passado toda a véspera do dia fatídico, planejando como o faria e onde o faria, para que meu segredo ficasse assegurado. Com quem, eu já decidira num prosaico sábado, enquanto assistia, pela televisão, a um jogo de futebol de final de campeonato, não sei qual e nem que equipes estavam disputando o título, tão envolvida estava com a escolha que me determinara: seria com meu amigo, tão antigo quanto os dedos da minha mão, pois com ele não ocorreriam riscos ou surpresas desagradáveis, eu mantendo, o tempo inteiro, o domínio situacional.
Quando tudo começou, a emoção era muito intensa, era mais do que paixão, era quase amor, porque se desenrolava, em mim, a certeza de que, enfim, podia viver o amanhã, que surgia no encantado verde espraiado de meus olhos, os quais, fixos no horizonte, esperavam pelas realizações e pelos prazeres, que tardavam. E talvez nunca chegassem, pois eram esperas de entregas desenfreadas, de temidas ausências, de promessas e de desejos satisfeitos, que atraiam e amedrontavam na ciranda indecisa, quase indefesa, de minha vontade.
Quando tudo começou, o relógio do tempo girava e girava, sem dó e nem piedade, com sua mesmice repetitiva, em círculos, tecendo minha ânsia de viver. E eu acreditando! Acreditando, que bastava um gesto, um aceno, um rabisco meu para tornar-me senhora de meu destino, que em desatinos, nesse tempo se perdia…
No dia escolhido, (o dia que eu havia cuidadosamente programado para a anunciada traição) o calor não era nem tão modorrento, nem tão forte. Havia muitos restos de umidade no ar. Pequenas gotas da chuva caída na noite anterior
teimavam em escorrer, devagar, pelos vidros… Pareciam pingos de prata liqüefeita, brilhando nas vidraças, onde o Sol se esmerava em desenhar corações coloridos. Da mesma forma, eu sentia minhas entranhas se liqüefazendo no prazer de um gozo antecipado, meu corpo trêmulo pela ânsia incontida da sensual espera.
Lembro que havia no espaço um ar de cumplicidade especial. Era invisível em minha tela mental: era como olhar o céu ao amanhecer, quando as estrelas empalidecem, a lua desaparece no horizonte e as extremidades do mundo se abrem em direção à luz, que renasce e a gente, por mais que tente, quase nada consegue ver. Experimentava tal cumplicidade fluindo, através de meu corpo, como se meu sangue em labaredas de fogo se tornasse…
Havia em mim a luxúria orgásmica do proibido, desenhando a imaginativa loucura da traição. Havia na rua muito brilho e muito suor, marcando sulcos nas faces, braços e peitos daqueles que passavam, quietos, apressados, viajantes do amanhecer, companheiros do frio da madrugada. Só eu não tinha pressa. Só eu passava devagar. Devagar como escorre a areia na ampulheta, quando a angústia de uma espera se materializa na ansiedade da escolha decidida…
Sonhara tanto com esse momento, ansiara de tal forma a sua vinda, que agora me restava apenas viver a mais voluptuosa aventura de minha vida. Todavia, ainda me indagava se realmente valeria a pena… (Muitas vezes é a ânsia da espera o melhor de tudo…)
Temia um pouco as conseqüências, mas o adivinhado sabor de pecado me intoxicava e me envolvia.
Olhando para trás, pergunto-me como ninguém suspeitou do que estava por acontecer; como ninguém percebeu o brilho lânguido dos meus olhos na expectativa do prazer que se achegava… Mas mesmo que o tivessem notado, penso que nada teria sido diferente, afinal, era uma decisão minha comigo mesma.
Aquele foi o primeiro dia da minha vida no qual não me preocupei por ser gordinha. Olhei-me no espelho e vi-me linda, macia, sedutora. Os quilinhos a mais haviam desaparecido nas ondas de meus devaneios. Eu me transformara toda em anseios.
Pintando de vermelho a minha boca de lábios cheios, umedecia-os com a língua, imaginando que sabor eles identificariam por primeiro: se aquele doce, que lembra sorvete de leite condensado com creme de baunilha e chocolate, ou aquele meio salgado, meio picante, que recorda um creme de amêndoas frescas… À tais lembranças, meu peito arfava por entre suspiros fundos.
O tempo se amplificava e se movia gloriosamente em direção a magia…
Eu era a magia!
Esquecia-me de mim e me debruçava no sorriso cativante, que busca amor, carinho e entrega. Esquecia minhas tristezas e minhas decepções para me transformar só em desejos e volúpias.
Aprontei-me da mesma maneira, que toda mulher apaixonada se apronta para encontrar com seu amante, mal disfarçando a emoção da minha primeira vez.
E pequei!
Junto com meu amigo, perfumada, maquiada e vestida com a maior sensualidade, diabética convicta e de carteirinha como sou, cometi a traição de minha vida: literalmente devorei, inteirinha, uma torta de morangos com chantily!