Coisas que Acontecem no Mar – Novas Aventuras de Maximiliano Serrano, o Chato Curitibano

– Vamos passar a virada do milênio em Angra dos Reis ­ anunciou dr. Marino no almoço de sábado, para alegria da família. – Nós vamos de avião e o
marinheiro leva o barco até lá. Convidei o Magalhães e ele aceitou. Também vai
de avião com a família e manda o filho levar o barco deles.
– Pai, você é maneiro ­ disse Patrícia, a filha mais nova.
– Fora de série ­ completou Aninha, a filha mais velha.
– Doutor Marino, conte comigo para acompanhar o bravo marinheiro nesta
intrépida jornada pelos nosso mares ­ prontamente se ofereceu Maximiliano Serrano, o chato curitibano e genro do pobre dr. Marino.
– Também tô nessa ­ disse Flanders, o outro genro, namorado da caçula.
Ele ganhou esse apelido por ser tão chato quanto Ned Flanders, o vizinho de Homer Simpson. Por sinal, a disputa entre Maximiliano e Flanders é coisa de gente grande. Pra competir com os dois em chatice só pesos-pesados como Galvão Bueno, Chico Anísio ou Otávio Mesquita.
– Maximiliano, não precisa se incomodar, meu filho. Você também,
Flan… Pedro Paulo. Nosso marinheiro é experiente e a viagem não é tão longa assim. Ele vai bem sozinho, ainda mais com o GPS que eu comprei ­ disse dr. Marino abrindo um sorriso. – Paguei uma pequena fortuna, mas é o que há de melhor no mercado. Úl-ti-ma ge-ra-ção.
– Uau! Mandou bem, sogrão ­ azeitou Flanders. Maximiliano, que mantém
uma disputa velada com o concunhado pela predileção do sogro, enciumou-se com o comentário. Mas não ficou pra trás.
– Creio que minha experiência náutica contribuirá para otimizar a utilização desse sofisticado aparelho. Para o bom andamento da viagem, enfim. ­ Maximiliano gosta de falar difícil.
– Experiência náutica? Passar anos tomando meu uísque e comendo meu pistache no meu barco é experiência náutica? Ora, faça-me o favor.
– Papai! ­ exclamou Aninha em defesa do marido.
Maximiliano não perdeu o rebolado, jamais perdia.
– Doutor Marino, faço questão. Minha presença é indispensável.
– Eu me preocupo com o bem-estar…
– Ah, eu nunca enjôo ­ garantiu Maximiliano.
– Eu me preocupo com o bem-estar DO MARINHEIRO! ­ Dr. Marino acalmou-se e
prosseguiu. – Tá bom, você pode ir. Mas deixe o marinheiro trabalhar sossegado.
Você também pode ir, Flanders.
– O nome dele é Pedro Paulo, papai ­ reclamou Patrícia.

O Início da Tragédia
Marina do Iate Clube de Caiobá, 29 de dezembro, seis e meia da manhã. O sol começava a aparecer, anunciando um dia ideal para navegar pelo litoral brasileiro. A tripulação do barco do Magalhães estava pronta para partir rigorosamente dentro do horário. No barco ao lado, o marinheiro e Flanders olhavam constrangidos para um irritado filho do Magalhães.
– Já estamos meia hora atrasados. Eu não vou esperar mais ­ avisou.
– Seu Flanders, por mim nós também vamos indo ­ disse Juarez, o marinheiro.
– Não, vamos esperar mais um pouco aquele bosta. Não que eu faça questão da presença dele, mas sabe como é, se ele fica depois não vai ter quem
aguente a reclamação ­ explicou Flanders em tom de lamento, olhando o barco do Magalhães sumir no horizonte. Subitamente ficou sério e disse ao marinheiro:
– E o meu nome é Pedro Paulo.
Maximiliano finalmente apareceu. Às dez da manhã. Carregando uma mala gigantesca. Usava óculos Ray Ban e a camisa aberta exibia a penugem no peito
magro. Caminhava em passinhos descontraídos, exalando o frescor de uma boa
ducha e a alegria de uma noite bem dormida.
– Bom dia, bom dia, o chefe da tripulação chegou! Juarez, partamos imediatamente. – Maximiliano olhou para o mar e respirou fundo. – Como disse
Caetano Veloso, “navegar é preciso, lari lari laláá”. Amigos, saúdem este destemido argonauta! – Maximiliano tem mania de cantarolar trechos de músicas
brasileiras para ilustrar seus pensamentos. Alguma graça ele tem.
– Ôrra, meu, a gente tá te esperando há quatro horas ­ bronqueou Flanders. Maximiliano fez que não era com ele.
– Atenção, atenção ­ disse com uma cara de mistério. Abriu a mala e tirou um quepe azul-marinho com âncoras e lemes dourados ao redor. ­ Agora posso embarcar ­ comunicou depois de colocar o quepe na cabeça e atirar a mala no peito de Juarez. Flanders olhou envergonhado para o marinheiro.
Juarez é uma criatura paciente e amável. Seu aspecto franzino esconde uma respeitável força física e a pele curtida pelo sol atesta mais de trinta anos nas lides do mar. Trabalha para o Dr. Marino há muito tempo, “desde a época em que o Maximiliano não fazia parte da família e eu era feliz”, costumava se queixar [o marinheiro] à esposa. Juarez não imaginava que Maximiliano estivesse por causar um evento trágico e acabar ­ perigosamente ­ com sua paciência.
Finalmente partiram. Flanders pediu para Maximiliano avisar o Dr. Marino sobre o atraso.
– Já ligo. Antes eu quero ver o GPS ­ disse ele com os olhos brilhando.
O GPS (Sistema de Posição Global, em português) é um instrumento de alta precisão que indica via satélite a localização exata de um corpo na Terra.
Pode ser um caminhão, um carro, um avião supersônico ou um barco a caminho de Angra dos Reis com dois chatos e um marinheiro azarado a bordo. Do tamanho de um livro, o GPS do barco do Dr. Marino tem visor digital, tela de cristal líquido e é ligado ao piloto automático. Garante comodidade e segurança para a navegação. Ou pode levar a embarcação para o meio do nada, se for manuseado por mãos imprudentes.
Juarez gentilmente colocou a mala de Maximiliano num dos quartos do barco e ia conferir no GPS a trajetória programada. Foi ultrapassado no caminho.
– Cheguei antes. Deixe eu ver como estamos. ­ Demonstrando concentração, Maximiliano começou a operar o equipamento.
– Seu Max, dá licença, é perigoso mexer aí.
– Eu sei o que eu tô fazendo, meu marinheiro. Tá bom, pode assumir, vou
preparar um uisquinho pra mim.
Flanders viu uma fagulha de irritação no olhar do marinheiro. Talvez prevendo o desfecho daquela viagem, tratou de agradar Juarez. Queria garantir a
maioria da tripulação em caso de motim e mostrou-se um interessado aprendiz.
– Juarez, como é que funciona esse negócio aí?
– Ah, é fácil, seu Flanders. A gente pega uma carta náutica, marca o percurso aqui e pronto. É so conferir de vez em quando ­ explicou Juarez em um
de seus últimos momentos de alegria. Olhou para Maximiliano e mudou o tom de
voz: – O único perigo é alguém que não conhece mexer e alterar o rumo.
– E o trajeto até Angra fica arquivado na memória?
– Justamente. A próxima vez que a gente for pra lá, é só selecionar o trajeto no arquivo. Não precisa programar de novo não. Ô, seu Flanders, esse cara é um mané, hein?
– Nem fale.
– Você não sabe o que ele aprontou uma vez.
– Vou adorar saber.
– O doutor Marino se inscreveu em um rali náutico. Era uma prova de regularidade, tinha que cumprir um trajeto em vinte minutos. Cada segundo a mais ou a menos a gente perdia um ponto. O doutor foi no leme, eu ia de navegador, o babaca ali veio junto e trouxe um amigo. Não é que ele pegou a carta da minha mão e quis navegar? O patrão não falou nada, eu pensei eles que
são brancos que se entendam. Os barcos saíam um por minuto a partir das dez e
meia da manhã. Como o nosso barco era o número trinta e quatro, a gente saía às onze e quatro, certo? A gente saiu nesse horário e passou por um barco de um
amigo do doutor. O pessoal desse barco fez sinal de não pra nós. E o doutor gritou: “Errados tão vocês!”, e fomos embora. Quando a gente passou o quarto barco, que fez o mesmo sinal que os anteriores, o doutor desconfiou que o problema era a gente. Então ele perguntou pro idiota ali: “Você leu o regulamento?”. E ele disse: “Vamos ver”. Se falou vamos ver é claro que não leu, né? O doutor leu o regulamento e viu que o primeiro barco saía só às onze, e não às dez e meia. A gente estava meia hora adiantado. Daí o doutor disse: “Agora temos que inventar uma desculpa e voltar”. Ele ficou passado, seu Flanders.
– E o que vocês disseram? ­ quis saber Flanders, com água na boca.
– O doutor disse pros amigos do Iate Clube que tinha arrebentado o cabo
do acelerador, mas ninguém acreditou. Daí ele contou a verdade. O pessoal tira
sarro do Maximiliano até hoje, ele nem imagina. E agora vem dar uma de esperto
pra cima da gente.
Maximiliano estava sentado da proa do barco tomando uísque e comendo o
pistache do sogrão. Flanders, depois de rir muito, abriu uma revista de mulher pelada e ficou ouvindo música no walkman. Juarez finalmente teve um pouco de
sossego. Dez minutos, precisamente.
– Quero ver onde nós estamos ­ avisou Maximiliano, apertando os botões
do GPS.
– Estamos no mar a caminho do Rio de Janeiro. Já pedi pro senhor não mexer aí, o senhor não sabe. . .
– Tô em casa, insolente. É claro que eu sei lidar com o GPS.
Maximiliano Serrano, o chato curitibano, entende de GPS tanto quanto você e eu, caro leitor, entendemos dos hieróglifos de Champolion ou do dodecafonismo de Schönberg. Depois de fuçar no aparelho, ele foi até a proa do barco e ficou contemplando o horizonte. Assumiu ares de lobo-do-mar, baforando um cachimbo imaginário, como se lembrasse de toda uma vida de batalhas, tormentas, mulheres e piratas nos mares de Netuno e nos portos dos cinco continentes. Encantava-se com o vôo gracioso das gaivotas, acenava para os golfinhos que exibiam sua coreografia nadando ao lado do barco, recebia sem temor lufadas de água salgada no peito. E voltava pra mexer no GPS.
A Caminho de um Naufrágio
E assim foi a terrível viagem. A cada quarto de hora, não mais que isso, Maximiliano ia vistoriar o GPS. E mexia e mexia. E mexeu tanto que deixou o paciente Juarez positivamente transtornado. O marinheiro chegou a dar um tapa
na mão de Maximiliano na última vez que ele fora “checar a localização”.
Flanders tentou ajudar Juarez e pediu para Maximiliano sair dali.
– Cai fora, Flanders ­ disse Maximiliano imitando Homer Simpson. Ele sempre falava isso para o concunhado e rival. E ficava rindo dele. Flanders nem deu bola. Estranhava a demora e, preocupado, consultou o marinheiro.
– Ô, Juarez, não era pra gente já estar em Angra? Olhe a hora.
– É, seu Flanders, eu tava pensando nisso agora mesmo. Tá demorando muito. Deixa eu ver o GPS.
O previsível aconteceu. Maximiliano tinha mexido tanto no equipamento que alterara a rota. Eles estavam perdidos.
– FILHO DA PUTA! ­ gritou Juarez. – EU VOU TE JOGAR NO MAR!
O marinheiro aplicou um severo pescoção em Maximiliano. Flanders segurou o colérico Juarez só depois de deixá-lo descarregar sua fúria por um certo tempo. OK, por um bom tempo.
Por sorte, o marinheiro conseguiu recuperar a rota certa. Calculou que em quarenta minutos estariam em Angra ­ se não acabasse o combustível. Um pouco
menos irritado, reuniu-se com o marujo Flanders para definir uma punição ao insubordinado.
– Comodoro Juarez, antes disso eu preciso fazer uma pergunta. Maximiliano, você avisou o dr. Marino que graças a você a gente só saiu às dez
da manhã?
– Nã… não… não era você que ia ligar?
– Comodoro, pena máxima. ­ E dirigiu-se ao prisioneiro: – Ô, estúpido,
era pra gente estar lá às duas da tarde. Sabe que horas são? Quase sete da noite. Imagine a preocupação de todo mundo. A histeria da tua mulher, por exemplo.
Maximiliano nada respondeu. Nem que quisesse, o marinheiro já o amordaçara.
Ancoraram em Angra pouco depois das oito da noite. Patrícia, aos prantos, abraçou Flanders. Dr. Marino abraçou o marinheiro. E Aninha ficou perguntando por Maximiliano.
– Tá lá dentro te esperando ­ avisou Flanders.
Aninha tirou a mordaça da boca do marido e suou muito até conseguir desatar todos os nós da corda que o amarrava e cobria quase todo seu corpo. Conhecedora da fama de Maximiliano, sabia que aquele castigo não era em vão. Depois de obrigar o marido a contar tudo, deu mais uma bronca nele.
Reclama, Serrano, Reclama…
Nos dois dias seguintes, a família do Dr. Marino fez vários passeios de barco pelo deslumbrante litoral fluminense. Menos Maximiliano, que foi condenado por unanimidade a ficar em terra. Alguns minutos antes da meia-noite do dia 31, quando Dr. Marino disse “mas você, hein?” pela décima vez, ele foi obrigado a admitir. Disse que reconhecia o erro, que as consequências poderiam ter sido trágicas. Mas protestou: “Eles não precisavam ter passado gelol no meu rabo”.