À tarde, posso ver o horizonte aqui da sacada. Sua linha delineando céu e terra. Só não posso ver o mar. Acho que o mar é a minha grande ausência. Há dias que eu gostaria de ver navios ancorando, ver pescadores lançando redes a partir das embarcações primitivas e a água batendo na areia impulsionada pelo coração do mar. Sinto falta dessa coisa fluída. Desse marulhar a envolver a minha alma… sinto falta de uma bolha d’água a me abrigar.
Mas, apesar das inúmeras ausências existentes em mim, não tenho ausência de pensamentos. E o meu pensamento lança âncoras ao mar. Nesse instante ele mergulha nas profundezas dos abismos líquidos e traz à tona os pequenos tesouros esquecidos no fundo do meu mar. Do meu oceano interior, tão particularmente navegável!
Há horas que navegar é preciso e viver não é preciso. Ah, Fernando Pessoa, quem dera eu tivesse essa simplicidade para adivinhar as coisas! E intuísse o destino do mar e o capricho das ondas espumantes. Mas fico aqui acumulando informações que são transformadas em saberes que não levam a nada e até me fazem perder a ternura, não fosse a poesia de Manoel de Barros que me alerta, diuturnamente, num tom meigo e aconchegante:
“Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar. Sábio é o que adivinha”.
Eu queria adivinhar. Queria adivinhar a flor da violeta que ganhei e o porquê dela ter aceito viver nesse vaso de dez centímetros, tão espremida e tão florida!
Por que as pessoas têm a mania de espremer o amor? Aqueles que já passaram a noite numa cama de solteiro sabem o que é isso. O amor aceita qualquer espaço. Por menor que seja. E se ajeita, se adapta e ainda produz flores. E olha eu aqui expondo a flor à luminosidade do sol para que não morra e continue a exprimir “eu-te-amos” e “eu-te-queros” num silêncio de planta quase artificial que esteve exposta numa prateleira de supermercado, longe, muito longe do mar.
E olha eu, perdida em meus naufrágios. Naufrágios de mim mesma. E apesar de todo sal na boca, ainda pulsa em mim essa insistente reserva de afeto. Essa insistente vontade de plantar árvores aladas que cresçam até a janela do meu quarto e me saúdem pela manhã com suas flores cor-de-rosa. As árvores são espectros de mim. Sou formada por muitas vidas. Uma delas é um vegetal que sangra raízes pelos veios tintos da terra até chegar ao mar. O próprio mar ausente que me traz à sacada pra fumar um cigarro imaginário (porque também não fumo) mas às vezes sinto falta do vício que nunca tive. Isso seria também uma ausência?
Ah, meu Deus, esses horizontes me espiando… Esta primavera pondo lírios nos meus braços. Essas borboletas cor de céu! Ah, como é bela esta vida tremulando aqui na minha frente!
Daqui não posso ver o mar, mas minha alma esta quase escapulindo para rolar na areia sob a brisa suave da manhã. E como diria Dostoiévski: “A vida exterior só serve para despertar-nos o que existe nas profundezas…”
E minhas profundezas é um oceano refletido nesse meu olhar de mar roubado, nessa minha lágrima com gosto de sal…