(VIAGEM MUITO DOIDA PELOS ANOS SESSENTA)
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É ISSO AÍ, BICHO!
Freqüentes vezes, Renato tentara deixar a barba crescer para ocultar sardas e espinhas que pontilhavam seu rosto, mas a emenda saía pior do que o soneto, já que sua barba mostrou-se cheia de falhas. Renato pesava ligeiramente acima do normal para a sua altura e recorria a litros de desodorante para combater o odor das axilas. (A mãe reclamava: “Você parece que bebe desodorante!”) Costumava escovar os dentes compulsivamente, quatro ou cinco vezes ao dia, temendo o mau hálito. Não tinha dificuldades em adormecer, mas, às vezes, acordava em meio a um pesadelo.
Pregado na soleira da porta de entrada da casa de Renato, estranho cilindro prateado despertou a curiosidade de Daniel:
– O que é isso? Algum amuleto?
– É da nossa religião. Nossa família é israelita, já ouviu falar? – explicou Renato.
– Não são os habitantes de Israel? – indagou Daniel, ao que o outro, doutoralmente, replicou:
– Não, habitantes de Israel são israelenses. Israelita é uma religião, como católico, protestante…
E abriu o jogo:
– A mesma coisa que “judeu”, já ouviu falar? – e explicou, jocosamente (sem que Daniel entendesse muito bem a piada), a diferença entre o israelita e o judeu: o primeiro é um judeu envergonhado, enquanto o segundo, um israelita sem-vergonha!
Daniel ouvira dizer que o judeu pregara Nosso Senhor na cruz e não abria a mão nem para dar “bom dia”. Sempre o imaginara distante, vivendo em guetos isolados e praticando rituais exóticos. Que o judeu fosse gente como ele, com casas de veraneio e contando anedotas, era novidade.
O amigo judeu logo se revelou emérito contador de piadas, “diplomado pela universidade de Coimbra, a mesma de Bocage”, como se auto-intitulava. Conhecia piada de padre e freira, de Jesus Cristo, de céu e inferno, o caralho a quatro! Entretanto, nas piadas de judeu, o seu poder de dramatização atingia o ápice, numa tentativa paradoxal de angariar simpatia para o seu sofrido povo:
– Sabem por que o ano judaico já está em 5727? – perguntava, simulando sotaque de gringo. Tão logo o interlocutor respondesse que não, saía-se com a seguinte resposta:
– Por causa dos juros e da correção monetária! – e fazia com os dedos o movimento de quem conta dinheiro.
A guerra entre israelenses e árabes, em 1967, foi para Renato fértil manancial de novas anedotas: – Fulano ganhou o prêmio da loteria federal e foi consultar um analista de investimentos. “Você faz o seguinte”, recomendou o analista, “compra um avião Mirage, enche de bombas e bombardeia o Cairo”. O novo milionário se assustou. “Você está maluco? Quero uma aplicação que me faça ganhar dinheiro, e não perder.” Sabem qual foi a resposta do analista?
Aqui Renato interrompia a piada, fitando um a um os ouvintes, à espera de uma reação. A piada se mantinha em compasso de espera. Passados alguns segundos, Renato prosseguia:
– Ninguém sabe o que ele respondeu? O seguinte: “Você pode ficar tranqüilo. Pode comprar as bombas e jogar sobre o Cairo. Se os judeus estão fazendo isso, é porque deve ser um excelente negócio!”
Incontinenti, Renato soltava ruidosa gargalhada para abafar o eventual silêncio de algum mau entendedor de piadas. No final, não se sabia se a platéia gargalhava induzida pelo riso estrepitoso do narrador ou em virtude da anedota propriamente dita. E as piadas sucediam-se como dominós em queda.
– Sabiam que na guerra entre árabes e judeus não se diz “inimigo a vista”?
– Como se diz? (Os amigos sabiam que, caso não retrucassem com uma perguntinha, a piada empacava.)
– Diz-se: inimigo a prazo! (Para algumas platéias, acrescentava: “em cinco suaves parcelas!”)
O pai de Renato, judeu yeke de Viena, após o Anschlu*, atravessou a pé, na calada da noite, a fronteira com a Suíça, percorrendo uma trilha por onde costumava excursionar. De lá, procedeu para Marselha, porto francês onde embarcou num paquete rumo à América do Sul (não sem antes subornar o cônsul brasileiro para obter o visto). Homem imperturbavelmente calmo, cabelos mais claros, lisos e ralos do que os do filho, pele clara deixando entrever alguns vasos capilares, ganhava a vida importando tapetes persas (fique bem claro: nunca praticou o contrabando) e dedicava as horas de lazer à audição da grande música. “Se tivesse tido a oportunidade de estudar”, revelava, “teria me tornado músico.” O Sr. Hermann (assim se chamava) transportava-se, através de quarteto de Haydn ou de sonata de Mozart, para o mundo espiritual. Tivera aulas particulares de italiano com o único fito de ler os libretos operísticos. Contava indignado o episódio do ex-vendedor de sua firma, a quem pilhara comentando com um colega: “Só há uma explicação para Beethoven ter composto aquela música horrorosa: como era surdo, não precisava ouvi-la”. Combinações sonoras menos etéreas que as da Santíssima Trindade (Bach, Beethoven e Mozart), tachava-as de “barulho”. Tal epíteto englobava desde as baladas de Roberto Carlos até o som espacial de Pink Floyd. Admitia uma única exceção: as marchinhas de carnaval, que gostava de cantarolar quando se aproximava a época. “Ó lua, é de madrugada, diga onde anda minha doce amada…”, entoava, sem esconder o sotaque. Ao que o filho, tremendo gozador, retrucava:
– Beethoven deve estar se revolvendo na tumba!
A mãe de Renato parecia movida a eletricidade: natural da Bessarábia, miúda e magérrima, cabelos negros em coque, voz de gralha, raramente permanecia quieta: ora punha a mesa, ora desfazia a mesa, ora preparava um bolo, ora lavava a forma do bolo, ora punha lenha na lareira, ora removia as cinzas da lareira… Não era dotada de lógica cartesiana: nos dias claros, insistia para que Renato levasse o guarda-chuva, pois o tempo poderia virar; nos dias de chuva, resmungava de nada adiantar, pois a pessoa acabava se molhando da mesma forma.
Dizia-se de Renato que, caso não existisse, teria de ser inventado, tamanha a sua brejeirice. Na primeira visita de Daniel à sua casa, revelou-lhe, oculta no fundo de uma escrivaninha, sob as gavetas, a maior coleção de revistinhas de sacanagem da face da Terra. Tinha revista do Super-homem que, incapaz de tirar o cabaço da Supermoça, por ser invulnerável, sobrevoava Metrópolis “batendo punheta”, a sua visão de raios X devassando a intimidade das mulheres cá em baixo e cada gota de esperma derramada abrindo rombos no asfalto! Tinha também a historieta de uma tal de Meipy Rocca que, como indica o nome (repita-o em voz alta, distraído leitor!), gostava de levar à boca mais do que meras bananas. Impagáveis eram os desenhos obscenos do próprio Renato, as histórias “infantis” da fadinha lésbica e do anãozinho tarado (com um pau desse tamanho!) e o bestiário com mais de dúzia e meia de espécimes, entre eles a “borboceta”, cruzamento de borboleta com boceta, o “passaralho”, produto do pássaro com o caralho, o “moscacete”, filho da mosca com o cacete, e por aí a fora…
Daniel “Maracanã” não tardou em apresentar aos seus amigos, Marcos “Quatro Olhos” e o delicado Afonso, o seu novo companheiro de pândegas, Renato “Piroca”. Com suas divertidas brincadeiras, com suas estratégias quase-militares para penetrarem sem convite em festas, com suas idéias malucas, como a de atirar uma galinha viva do balcão do Art Palácio em plena sessão, Renato logo se transformou no elemento agregativo daquele grupo de jovens sem rumo, espremidos entre uma geração de pais que queria vê-los formados e ganhando dinheiro e um admirável mundo novo que emergia, produto do idealismo juvenil, adubado por um marxismo-leninismo com pitadas de revisionismo, temperado com o misticismo oriental, ao som do rock e cheiro de cannabis sativa… É isso aí, bicho!