Densa Paixão

Sempre fui fascinado pela beleza das serras que compõem o maciço de Baturité. Desde pequeno em viagens de trem que me via adentrando aquela mata, tomando banho nas grotas alvas que escorriam espumas e me esbaldando com suas mangas, uvas e bananas como se fosse um nativo a respirar todo o clima. Ao pisar na argila vermelha me sentia como se estivesse no paraíso, ainda que em sonhos.
A curiosa sensação de visitar a serra, a qualquer pretexto, e cortar seus serrotes me fez um conhecedor de seus terríveis e roucos gritos de cada uma de suas tragédias anônimas. Cataloguei, por prazer, todas as suas espécies de animais e plantas. Como num quebra-cabeça, refiz o roteiro de suas trilhas e grutas e o guardei na palma de minha mão, igual a meu destino. Se não me falha a memória, muitas vezes, armei a rede nos frondosos galhos de suas seculares árvores em que embalei os meus melhores sonos.
Quantas vezes parei para olhar mais de perto seus velhos casarões de um período em que se ainda podia cheirar o ar dos engenhos de cana-de-açúcar, movidos a boi e a escravos. Foi nessa procura que descobri, meio por acaso, que em minhas veias corriam sangue negro. Vovô havia seduzido a bela negra Antomara e, nas noites frias de inverno, a desposava em uma de suas fazendas. O fio da meada de minha atração pela serra tinha ponta.
Era noite de carnaval e o país inteiro fazia sua revolução pelas ruas em ritmo de samba. Em transe, eu somente conseguia ouvir a batida dos tambores que ecoavam dos terreiros das senzalas. Ao passar pela avenida da Abolição que liga a cidade de Acarape à cidade de Redenção, caí perdidamente apaixonado diante da negra que dá vida ao monumento de arte que simboliza a libertação dos escravos. E, como um mestre sala, peguei em sua mão, de cabeça erguida fitei os seus olhos e na cadência de um requebro, entre a música e a loucura, lhe puxei daquele enorme quadro e, vivalma, assim como quem faz o destino de sua gente, nos embrenhamos no caminho do idílico quilombo do maciço à procura da aventura perdida.
Quixadá, 23 de março de 2001.