Ler tem sido meu vício desde sempre.
A mais remota lembrança de mim mesma, quando me alcança, traz sempre em seu cenário um livro qualquer, ora nas estantes que mal identifico se verdadeiras ou inventadas, ora nas livrarias e bibliotecas, ou soltos, assim, sobre a escrivaninha onde trabalho, seres habitantes do meu mundo.
Escrever também tem sido sempre meu vício.
A mais remota lembrança que trago à tona, asfixiada do perfume dos jasmins ou das laranjeiras em flor, vem-me feita de palavras e imagens, cenas que eu quis fixar de alguma forma, coisas que planejei dizer e que me falharam ou brotaram tranqüilas e formaram histórias.
Às vezes, trago para minha companhia um ser feito de palavras, brincadeira lúcida, tímida, porque lhe tento construir modos e gestos, ai de mim que imagino tão pouco e que através de mim tudo toma o rumo do fútil e do perdido.
Estou lendo Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia. Estou lendo e choro, releio os capítulos e choro, ah, meu amor, diz o narrador, estás chorando, meu amor?
Não sei por que, que nada ou quase nada se explica neste mundo tão grande e surpreendente, mas isso me explica o mundo: estás chorando, meu amor?
Pergunta de mãe ao filho pequenino? Interrogação do homem à mulher que ama? Interrogação da mulher ao homem amado?
Eu não sei… de repente, a pergunta me atinge em cheio, meu coração se espanta da delicadeza, é como se o mundo e as pessoas se compreendessem, e a frase gritada no ar fica ardendo, vibrando: estás chorando, meu amor? Estás, estás com os olhos cheios de lágrimas.
O que leio? A história de um homem e de uma mulher, tal como a história de Adão e Eva, Dafne e Cloé, Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Deucalião e Pirra, tantos outros. Leio a história de um amor e choro. As histórias de amores verdadeiros me comovem tanto que me esqueço de que elas são sempre inventadas, improváveis de todo, quase impossíveis.
Amor é bicho esquisito, danação, mesmo que seja só num romance de Saramago.
Estás chorando, meu amor? Pensas como eu na distância que não nos deixa atravessar de pronto os oceanos? Pensas que se pudesses voarias e tocarias devagar o rosto da mulher amada, que te libertarias de todas as prisões interiores? Pensas que o tempo passa, meu amor? Que tudo vai e termina e se consome? Sabes de cor o nome dos Oceanos, mas não sabes como resolver os problemas mais simples: voar como um pássaro friorento para um beiral mais alto…
Estás chorando, meu amor?
Perdeste o caminho secreto entre pedras e algas, entre grilos e ninhos, entre o pão simples sobre a mesa e o cheiro do alecrim depois da chuva? Ah, meu amor, tens os olhos turvados agora, já nem sabes mais andar descalço, rente ao mar, fazendo ranger a areia, olhando a montanha e com o coração tão cheio de alegria?
Ungidos pela esperança, nos damos o direito ao sol do meio-dia? Ah, meu amor, não chores mais em silêncio dentro de ti… ah, meu amor, deixa teu choro chorar todos os choros que escondeste desde sempre sob o tapete de tua bem-posta sala de visitas, na dobradura de teu cartão de apresentação, perdido entre os números de tuas faturas de crédito.
Estás chorando, meu amor?
Leio Saramago e choro, choro e choro tanto. Talvez pensando nos seres humanos que se perdem nos descaminhos, nos que usam as pessoas sem que eles próprios se sintam usados. Penso nos beirais e seus pássaros,ninhos, em como é fácil decorar o nome dos mares, dos peixes e dos rios, quando é tão difícil decorar o nome das criaturas e das suas necessidades.
Estás chorando, meu amor?
E meu peito se enche de histórias vividas e inventadas. Mas guarda atônito e incontido datas e circunstâncias, fatos e acontecimentos.
Fecho o livro, acabou a história.
Vibra no ar apenas a pergunta. Não viro mais as páginas, páginas mais não há. Está tudo em branco porque os livros terminam, porque a vida termina, mas o amor, ou amores, mentidos ou verdadeiros, ficam para sempre cintilando no escuro das nossas pobres e toscas almas.
Pura esperança, cega fantasia.