Todos os domingos no programa “Fantástico” da rede Globo, um quadro traz como personagem principal o mágico Mr. M. Muitos já o conhecem até pelas máscaras que são vendidas e mesmo pela recente turnê que fez pelo Brasil. Sua apresentação é um número de mágicas, todas com grande produção, onde são revelados os segredos dos truques dos mágicos famosos. Ele aparece mascarado, embora seu rosto e nome verdadeiros já fossem veiculados pela imprensa que se debruça sobre este novo fenômeno da mídia. A polêmica se alastrou devido à quebra do código dos mágicos, que jamais permitiriam que seus segredos fossem mostrados ao grande público. Mais do que uma luta entre a proteção da atividade de uma certa categoria profissional artística e a liberdade de expressão, esta atitude apenas reflete um desconforto do homem moderno perante o desconhecido.
Já se foram os tempos em que o homem se vislumbrava com o mundo onde habita.
Tiramos os lugares dos deuses para colocarmos sobre o altar a mecânica das coisas. O que antes estava encarnado pelo sobrenatural foi sumariamente exorcizado. A concepção de um Deus invisível separado da sua criação foi uma grande reviravolta estabelecida pelo judaísmo e a conseqüente história do monoteísmo. Com o Iluminismo e a Renascença, os resquícios de intervenção divina sobre o mundo foram deixados de lado e os atributos da razão do homem passaram a ser a região por explorar. A Reforma também deu um largo passo no processo de secularização. A ética protestante separou a religião dos assuntos cotidianos (separação Igreja e Estado). Compartimentalizamos cada vez mais certas esferas para um maior controle, definindo seu lugar.
As artes do prestidigitador como toda arte possui seu período iniciático de aprendizado. A nós é dado o deleite de seus efeitos, a obra final da performance ensaiada e aperfeiçoada. Para salvaguardar sua arte, o processo de criação é ocultado. Isto porque não interessa revelar os segredos ao público leigo da gênese de algum artefato criado, sua intenção é oferecer-lhes o produto final como ápice da perfeição do fazer do artista que não necessita da interrogação de como foi feito. Mas onde as luzes imperam, o mistério é pária nômade que procura se afugentar do ofuscamento. Onde tudo brilha, pouco se enxerga. Certas coisas só podem ser compreendidas com meias-palavras. É tarefa da poesia, por exemplo, imbricar com sua metáfora para sugerir o indizível.
Assim aparece o mágico da desilusão Mr. M. Atendendo à nossa incredulidade perante a tudo, vem nos confortar desmascarando um véu que a princípio foi bordado apenas com o intuito de ser belo ou maravilhoso. O show de Mr. M apresenta primeiro a ilusão e depois a sua desmistificação; sua atuação é a mesma em ambas situações. Da mesma maneira em que apresenta com gestos controlados as partes de uma jaula sem modificações e a mágica da transformação de um tigre numa mulher, assim ele faz, como se continuasse o poder das mãos, durante a tomada em que mostra todo o processo em que o tigre foi engenhosamente escondido e em seu lugar entra a mulher na jaula. Todo o “suspense” é apoiado pela narração forçada de Cid Moreira, assim como a exaltação dos milagres nas suas interpretações da Bíblia. Poderíamos creditar a Mr. M a arte do desvelamento? Estaríamos então mais próximos de um espetáculo de peripécias científicas do que uma atração artística. Segundo Oscar Wilde, a mentira constitui o legítimo intento da arte.
Entender o processo de secularização no mundo, o aumento do espaço profano em oposição ao espaço sagrado, ou sobrenatural, é uma das grandes questões concernentes à história do homem ocidental. Porém, isto nunca se deu de forma absoluta; sempre nos acompanha a busca pelo ilusório como se ele mesmo nos dissesse coisas que não são sussurradas através dos maiores esforços intelectuais. É muito fácil também nos assombrarmos com os devaneios da imaginação. Alguns seres imaginários habitam as sentinelas de regiões obscuras que temos medo de penetrar; recorremos à prática da elucidação que veste sua armadura e empunha o seu archote para iluminar estas áreas desconhecidas do homem, tanto fora como dentro de sua pele. Ao cavaleiro, resta conhecer o dragão, já que ele nunca morre. Saber a hora da ameaça, quando ele está blefando, ou quando ele realmente quer dizer algo importante de como devemos atravessar estas terras inóspitas.
O “inimigo número um dos mágicos” pode forçá-los a rever seu espetáculo e aprimorar novos truques. Quanto mais a parafernália tecnológica cresce para convencer a ilusão ao público, mais ela se torna a protagonista do espetáculo, como acontece com a maioria dos filmes de ficção científica e seus making-offs.
Do que adiantaria realçar a ilusão se ela é em seguida desmistificada? Muitas culturas aprenderam a ouvir e interpretar os sonhos; agora, não passam de uma confusão de imagens no anteparo mental proporcionada por impulsos elétricos no cérebro. Com o surgimento da psicanálise, foi somente a partir do século passado que se desenvolveu um estudo daquilo que aparenta desconexo e sem sentido, buscando extrair as mensagens latentes das situações oníricas. Mais uma vez, o ilusório surge como elo de comunicação, insinua por trás dos enigmas patamares mais altos onde a imaginação pode chegar, leva a uma maior compreensão do homem e do mundo em que vive. A compreensão não precisa ser exata e total, pois aí sim constitui em falsa ilusão. O homem tem seus limites e sua lógica apenas alcança o que é lógico. As revoluções científicas continuam revisando seus cânones e o pretenso controle do mundo se vê em crise. É bom lembrar que, mesmo aquele quem desvenda toda a ilusão, explicando os procedimentos do sumiço do tigre, porta a sua máscara. E já não é mistério algum o rosto que se esconde atrás dela.