Um cão sozinho no vento

Saio de casa tão correndo que me esqueci das luvas, e o dia frio, como está frio o dia hoje, meu Deus!
Na rua, o vento gelado me bate em cheio, meus cabelos voam e as pontas dos dedos , geladas, ficam guardadas no fundo dos bolsos do casaco. Mas cadê que se aquecem? Um cachorro, saído não sei de onde, me acompanha, vai silencioso atrás de mim, ora ao meu lado, leva os olhos de afeto. Depois, desiste, vai seguindo o seu próprio caminho . Destino dos que não têm dono, penso eu olhando o cão se distanciando, distanciando, sozinho no vento.
Sinto os pés, também gelados, dentro das botas e gostaria de estar em casa, com o aquecedor ligado, lendo. Penso que gostaria também de ter agora uma grande xícara de café fumegante, uma conversa boa, falar assim como quem não quer nada, comentando assuntos, encadeando-os uns aos outros, ficar em frente a uma lareira olhando o fogo, pensando e falando, talvez lendo trechos em voz alta em frente à lareira ancestral, o fogo do lar para os gregos, os penates…
Estou delirando outra vez, e os dedos gelados doem… Uma parte de mim pesa e pondera, outra parte delira, Gullar. Eu deliro sempre, eu sempre invento coisas para não morrer de tédio, para não ser engolida pelo cotidiano, para poder, um dia, morrer em paz. Invento coisas verdadeiras, acredite. Pena que muitos mintam…
Tento inventar jogos pra não sentir tanto frio, declamo alto poemas que sei de cor, coração; que me importa se as pessoas imaginem que eu esteja louca? Acho que sempre estive louca e que agora, depois de tanto tempo, vêm-me os primeiros sinais de lucidez. Declamo e rio, o vento faz os meus cabelos voarem, fico rindo e andando sem sentir muito as pernas , as armas e os barões assinalados, não, meu coração não é maior que o mundo, Drummond.
Continuo fazendo jogos, escolho uma pessoa de quem sinto saudades, converso, conto histórias, declamo: adeus que eu parto, senhora, negou-me o fado inimigo passar a vida contigo, ter sepultura entre os meus. Gonçalves Dias de olhos tristes, fado inimigo… Mas o destino é sempre inimigo. Principalmente quando se pensa e não se lê Paulo Coelho. Rio… Que idéia é essa agora de Paulo Coelho, nesse baita frio?
Continuo declamando os poemas, agora não sinto mais o nariz: Dizem que o amor é falso e enganoso, Camões…
Vou andando, olhando os prédios, as pessoas. Gosto de observar o rosto das pessoas, também eu esta colecionadora de criaturas, também eu levando dentro do peito um imaginário museu, guardando, guardando, guardando.
Entro no carro, ligo o aquecedor e fecho os olhos. Por um instante, me vejo no quintal de minha velha casa de menina, correndo ao redor de uma roseira que dava rosas brancas, grandes, rosas que deixavam o chão cheio de pétalas; os janelões que se abriam para um jardim, as bungavílias que se debruçavam sobre o muro, talvez querendo espiar o mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é o meu coração.
Aos poucos, vou me aquecendo, avaliando os nãos e os sins com os quais tenho que conviver, repetindo, como sempre tenho feito: mais ganhei do que perdi, vida; vida , minha vida, olha o que é que eu fiz, Chico.
E me ponho de volta. Para mim , para a minha casa, os meus, para as flores que vieram, em pleno inverno, as jardineiras transbordando, o meu olhar ali, procurando a causa do presente que o jardineiro me dá. Mereço os presentes de olhar? Então, olho porque a vida às vezes dá presentes, mas a gente nem vê, nunca vê… Olho as jardineiras, me sento ali no frio e fico olhando o jardim, pequeno, mas nosso. Há presentes que nunca pedimos, mas que nos são dados assim, de graça, pela vida. É só querer ver, é só querer… Ah, diz se é perigoso a gente ser feliz, Beatriz.
Entro em casa, os dedos gelados no bolso do casaco. E faço uma grande xícara de café. E na casa silenciosa, as pessoas ainda fora, soluço. Um pouco o frio, um pouco o medo. Tomo meu café aos goles, aos soluços, e depois me sento perto do aquecedor, imaginando que não deveria ter saído daqui; como me reaquecer agora, como parar de sentir tanta dor nas pontas dos dedos e no peito? E abro o livro.
Lá, Saramago me diz:”É o costume, disse José Anaiço, os cães resistem a separar-se do dono, às vezes, deixam-se morrer.” Coincidência? Penso por um instante naquele cão da rua, sozinho, ao vento.
E meu coração , aflito, embarca outra vez nesta jangada de pedra.
Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, Rosa dos Ventos. Mas lá fora, o vento zune. Como todos os ventos. Às vezes, vida, a vida é assim: a gente se sente um cão ao tempo, como se fosse um cão ao vento. Um cão sozinho no vento.