Marcos, o iluminado – parte 8

MARCOS, O ILUMINADO
(VIAGEM MUITO DOIDA PELOS ANOS SESSENTA)

8
Nas férias de verão em Teresópolis, dedicam-se a biritar e paquerar. Uma noite na boate, Marcos conhece Dóris e marca encontro com ela na Taberna Alpina na tarde seguinte. Mas Dóris acaba trocando-o por um indivíduo musculoso, de má catadura e tatuagem no braço, ambos se beijando sofregamente na boca, língua contra língua, em pleno salão!

ANO DE 1969: enquanto Procópio Ferreira encerrava com chave de ouro a sua carreira de ator interpretando o avarento de Molière; enquanto técnicos e cientistas da NASA concluíam os preparativos para roubar a lua dos “poetas, seresteiros, namorados”; enquanto norte-americanos, sul-vietnamitas e vietcongues sentavam-se à mesa, tentando negociar uma saída honrosa das tropas ianques do Vietnã que não colocasse em risco o governo de Saigon; enquanto o retorno do Brasil à legalidade começava a ganhar corpo, através do projeto de constituição que Costa e Silva incumbiu Pedro Aleixo de elaborar; enquanto o mundo girava e a Lusitânia rodava, Marcos, que, com lentes de contacto, deixara de ser o “Quatro Olhos”, Daniel, que, com o final dos torneios de futebol de botão por falta de quorum, deixara de ser o “Maracanã”, Renato, que, depois da lastimável “cena” na Fazenda da Paz, deixara de ser o “Piroca”, para se tornar o “Pentelho”, e Afonso, que nunca teve apelido, começaram nova fase em suas vidas: a preparação para o vestibular.

Daniel, contrariando antigo projeto de seu Rodolfo, decidiu nem estudar Economia, nem assumir no futuro a fábrica do pai; descobrira a vocação para a sociologia, a ciência que estuda as leis que regem a organização social. Já Afonso seguiria a carreira do pai, a arquitetura. Renato também não tinha dúvida: o pai prometera Fusca zerinho se passasse no vestibular de Engenharia (um dos mais difíceis, com sete candidatos por vaga), e Renato não era de pensar duas vezes. Quanto a Marcos, após marchas e contramarchas, também chegara a uma decisão.

Com cerca de dez anos, Marcos imaginara (quem sabe, influenciado pelo seriado de televisão do Dr. Kildare?) envergar no futuro o jaleco, tornar-se “doutor”, salvar vidas; o sonho, porém, não sobreviveu aos tristes acontecimentos que cercaram a morte da mãe, Marcos mais de uma vez tendo ido visitá-la no hospital, magérrima, face encovada, respiração ofegante, agulha de soro espetada no braço… Nos primórdios da adolescência, pensara em se tornar filósofo. Admirava aquelas mentes semidivinas, tão abstraídas do feijão com arroz de cada dia. O grande sábio Tales de Mileto que, em certa ocasião, ao vagar pelos campos observando as estrelas, tropeçou na ribanceira de um córrego e mergulhou na água gelada, ao que uma velha que passava pelo local observou de que valia tamanha sabedoria se não ensinava a caminhar sobre o chão. O cínico Diógenes, tendo por moradia simples barril, que, interpelado por Alexandre Magno, cujos ouvidos a fama do filósofo havia atingido, e por ele instado a exprimir um desejo, pediu-lhe que saísse de sua frente, pois desejava banhar-se ao sol; o excêntrico Arquimedes, que, ao descobrir o princípio da hidromecânica mergulhado numa banheira, disparou pelas ruas de Siracusa, nu em pelo, aos brados de “Eureca!”. O princípio da realidade, porém, falou mais alto: temeu acabar desempregado, eterno dependente do pai. Afinal, grande era a distância (no tempo e no espaço) entre a Grécia de Platão e o Brasil de Medici. De uma feita, Daniel tentou convencer Marcos a acompanhá-lo na sociologia; todavia, aquela profissão de “solteironas, metidas pelas favelas em pesquisas de campo de moradores por domicílio e hábitos alimentares e crenças religiosas” não o seduziu. Por razão análoga, descartou a antropologia: se pouco lhe interessavam favelados e marginalizados, menor ainda o interesse por remotas tabas indígenas. Premido pela necessidade de escolha, por um lado, e pela dúvida nada metódica, por outro, acabou acatando a sugestão do pai: fizesse teste vocacional com algum psicólogo. O resultado da bateria de testes, entretanto, deixou-o indignado: bom raciocínio verbal aliado a temperamento curioso e investigador, ergo deveria se tornar jornalista. Definitivamente, o prognóstico de sair à cata de figurões para entrevistá-los provocava-lhe calafrios: sentia-se demasiadamente tímido para tal sorte de estripulias! O pai, uma vez, sugeriu Direito, mas Marcos julgava-se mau orador. Num belo dia, o “estalo”: cursaria Letras. Estudaria as grandes páginas da literatura universal, o drama de Shakespeare, a tragédia de Sófocles, a comédia de Molière, o alexandrino de Camões. O pai tentou demovê-lo do intento: “Você não acha uma pena desperdiçar sua inteligência com matéria tão fácil, com um só candidato por vaga no vestibular?” Debalde! Marcos sentiu-se como César, quando decidiu atravessar o Rubicão: estava lançada a sorte! Avante! Eia! Sus!

Certa tarde de domingo, cansado de divagações e em dúvida sobre aonde ir, Marcos resolveu passar em casa de Sônia. Na sua última visita a ela, na terça-feira gorda de Carnaval, em Teresópolis, atenuara-se a má impressão inicial causada por aquela garota pouco convencional, que preferia a luz difusa das estrelas à iluminação feérica das boates, o canto plangente das cordas do violoncelo à estridência da guitarra elétrica… Sônia revelara a Marcos que, já na infância, apreciava suites de Tchaikowsky, o pequeno serão musical de Mozart. A revelação da sua vocação, porém, dera-se na adolescência, quando resolveu estudar violão. De início mero capricho de quem deseja estar “por dentro da moda”, a menina Sônia logo se surpreendeu com a facilidade com que dedilhava o instrumento e assimilava as lições. O professor – rapaz baiano de cabelos encaracolados e voz mansa, vindo um ano antes para o Rio com o intento de tocar música popular brasileira, mas que, às voltas com a concorrência “desleal” da música estrangeira, acabara guitarrista elétrico num conjunto que imitava os Beatles – ficou pasmo com a agilidade de Sônia ao instrumento, vaticinando: “Em um ou dois anos, você é que estará dando aulas para mim”. O violão, entretanto, em pouco tempo revelou-se limitado, não só quanto à sonoridade, mas principalmente quanto ao repertório, na opinião de Sônia. Grandes compositores, como Mozart, Beethoven, Schubert, não legaram obras para a guitarra. Durante algum tempo, Sônia pensara em trocá-la pelo violino. No entanto, sua sonoridade parecia-lhe (não ao integrar a orquestra sinfônica, mas como instrumento solista) um pouco “estridente”, “enjoativo”, chegando a evocar a serra elétrica. Indecisa quanto ao instrumento de cordas adequado a seu talento, Sônia passara a freqüentar audições de quartetos de corda. E, analogamente a Saulo, ao ver Jesus na estrada de Damasco, Sônia também tivera a sua revelação, ao escutar a sonata opus 102 de Beethoven, interpretada por famosos músicos russos: aprenderia violoncelo! Nessa época, calhou que o professor de violão, alçado pelas asas da fama depois de ter tirado segundo lugar em festival da canção da Record, abandonara os seus alunos. Foi o pretexto que faltava para o “corte epistemológico”: sai de campo o violão, entra o violoncelo. Para o futuro, Sônia planejava tentar uma bolsa de estudos na Alemanha, o que lhe exigiria relativo domínio do idioma teutão, do qual, àquela altura, só conhecia três expressões: guten Tag, Vokswagen e Telefunken! Para aquela denodada garota, contudo, não existia dificuldade intransponível. Pretendia, no semestre vindouro, matricular-se no Instituto Goethe. Per ardua ad astra! As declinações do latim aprendidas no colégio talvez viessem a ajudar.

No Rio de Janeiro, a família de Sônia habitava um apartamento na Barão de Ipanema em sólido prédio da década de quarenta. Quando Marcos tocou a campainha, atendeu a empregada: – A Sônia está? – perguntou.
– Está! – respondeu a portuguesa de bigodes, sem esboçar qualquer outra reação.
– Posso falar com ela? – insistiu Marcos. Antevendo uma resposta idiota (“Pode!”), apelou para o modo imperativo. – Faz o favor de chamá-la!
– Acho que dona Sônia está ocupada – respondeu a serviçal de parcos dotes intelectuais.
– Vai lá dentro e pergunta para ela! Diz que é o Marcos! – insistiu, quase deixando escapulir sonoro “porra”.

Em contraste com a terça-feira de Carnaval, naquela tarde, surpreendentemente, Sônia não proferiu sequer uma vez a palavra “violoncelo”. Pediu desculpas por não apresentá-lo aos pais, que estavam descansando, e sugeriu a reprise de E o Vento Levou…, no cinema Pax. Sônia contou que a sua mãe já assistira à fita dez vezes, invariavelmente debulhando-se em lágrimas. “Aliás, o último programa de mamãe e papai”, contou Sônia, “foi reverem E o Vento Levou…” E lá se foram os dois amiguinhos para, à semelhança dos pais de Sônia, trinta anos antes, derramarem suas lágrimas pelo drama de Scarlett O’Hara.

Terminado o prolongado dramalhão, a lacrimejante Sônia pediu ao emocionado Marcos que a levasse para casa. “Não quer tomar um chope no Castelinho?”, aventurou Marcos, surpreendendo-se com a própria desenvoltura. Sônia, entretanto, estava cansada e teria de acordar muito cedo no dia seguinte, de modo que resolveram deixar o Castelinho para a semana seguinte.

Tão logo chegou em casa, Marcos topou, sobre a escrivaninha, com o recado: “Ligar sem falta para Renato”. “Ligo amanhã”, pensou, e deu três “tapas” numa “baganinha” que guardara, a fim de melhor curtir o cor-de-rosa da felicidade. “Amanhã, compro uma mutuca.” E pôs um Bee Gees na vitrola.

O leitor que tenha se submetido a sessões psicanalíticas está familiarizado com o conceito da “divisão do eu”. O ego compõe-se de várias facetas: o lado “bom”, o lado “mau”, o lado “destruidor”, o lado “protetor”, o lado “adulto”, o lado “infantil”…

Basicamente, existiam dois Renatos: o Renato público e o privado. Renato possuía o dom natural de centralizar as atenções, com a piada certa na hora exata. No entanto, encerrado entre quatro paredes, tornava-se “peixe fora d’água”, índio botocudo (não confundir com “botou no cu do índio”) perdido no cruzamento da Nossa Senhora de Copacabana com a Figueiredo Magalhães. Tipos como Renato não nasceram para o monastério, a prancheta, o farol; dão bons políticos, advogados, tycoons…

Fausto vendeu a alma pela juventude perdida; Renato vendeu a sua bem mais barata: exatamente por um Fusca. O sonho do Sr. Hermann, pai de Renato, fora fazer do primeiro filho um médico (“convém ter um médico na família”), do segundo um advogado (vale o raciocínio anterior) e do terceiro um engenheiro. O médico clinicava com sucesso em Copacabana; a irmã de Renato recentemente se formara advogada; restou ao filho temporão a opção: ir para a faculdade de engenharia de Fusca (com o mulherio todo de olho!) ou ir para outra faculdade qualquer de ônibus lotado, cheirando sovaco por todo lado. Renato escolheu a primeira alternativa.

Adeus programas, praias, cinemas! O cursinho preparatório para o vestibular exigia dedicação integral. O Bocage da piada cedeu lugar à incógnita da equação matemática; o “portuga” encharcado no bonde vazio em dia de chuva por não ter com quem trocar de lugar (“Trocaire com quem?”) foi substituído pelas leis de Newton; saiu o judeu agonizante, preocupado com quem estaria tomando conta da loja, entrou a tabela periódica de elementos.

No domingo, uma folga, que ninguém é de ferro! Depois da partida de vôlei com a turma da praia e de lauta feijoada que provocaria indignação em um rabino ortodoxo, dormiu o sono dos justos. Sonhou com a aula de química inorgânica: a professora discorria sobre partículas alfa e beta, garatujando intrincada fórmula no quadro-negro; sem mais nem quê, pôs-se a desabotoar a camisa de seda; “a carga positiva do núcleo (dizia, apontando para o seio esquerdo) equivale à carga negativa total dos elétrons” (e apontou para o seio direito, intumescido e com a aréola escurecida como de lactante); ao começar a tirar as calças para ilustrar uma das propriedades da matéria, a porra do telefone tocou. Vozinha de adolescente perguntou pela Edite. – É ela quem fala – respondeu Renato, imitando voz de mulher, indignado por ter tido o sublime sonho tão bruscamente interrompido.
– Vai para a puta que te pariu! – respondeu o namorado de Edite, algum surfista “pintoso”, de cabelos oxigenados, mas sem o menor senso de humor.

Renato percebeu que sua cueca estava totalmente “esporrada”; culpa da professora de química inorgânica. Desde a façanha com as chacretes, mantinha-se casto como padre: falta de oportunidade. Talvez devesse ter passado depois da praia no puteiro; agora, tarde demais: a quota semanal de espermatozóides, acabara de derramá-la na cueca. No íntimo, Renato sentia-se enfastiado com o sexo sem amor; procurava a recíproca, o amor sem sexo (a síntese, sexo com amor, atingiria no casamento). Durante as férias em Teresópolis, não poupara investidas nas boates de sábado à noite; porém, com exceção de uma ou outra empregadinha, com quem marcara encontro no domingo para um sarro atrás de algum poste, não tivera sucesso. Renato tinha consciência das limitações: sabia-se “escroto”, as mãos sempre molhadas de suor, o cabelo cheio de caspa. As gurias preferiam “coco-boys” boa-pinta, franjas à Beatles, lábios carnudos, voz bem modulada, verdadeiros “picas de mel”. Telefonou para Marcos (“quem sabe, ele tem alguma festa para ir?”). A empregada do outro lado da linha informou que ele havia saído. “Sabe aonde foi?” Não, não sabia. “Posso deixar recado?” (Podia.) “Diz que telefonou o Renato. Não esqueça.” Tentou Daniel: tampouco estava em casa. Pensou em ir ao cinema, estava passando um bom bangue-bangue perto de casa; mas sozinho não tinha graça. Abriu livro qualquer: depois de alguns minutos, deu-se conta de estar repetindo mentalmente as palavras, sem assimilar o significado das frases. Folheou a apostila de química inorgânica: a lembrança da professora fez voltar-lhe a tesão. Lembrou-se das coxas de Tânia (nome tesudo), única colega de turma de sexo feminino. (“Feliz é o Marcos, que só tem fêmea na turma!”) Se algum gênio da lâmpada viesse realizar os seus desejos, pediria Tânia nuinha em pelo para “enfiar a pica entre suas tetas de vaca”. “Será que Marcos voltou?” Discou novamente. “O seu Marcos ainda está na rua”, informou a empregada. “Não esqueça de dar meu recado: telefonar para Renato sem falta.” Como preencher o tempo à sua frente? O vazio pesava como chumbo. “Será que Marcos está lendo e mandou dizer que não está? Ele tem dessas manias.” Telefonou pela terceira vez e a empregada respondeu como se fosse pela primeira (“não terá reconhecido minha voz?”), prometendo deixar o recado por escrito. “Pessoas disformes costumam ser marginalizadas. Serei disforme?” Apelou para a namorada imaginária e acabou batendo uma punheta.

No domingo da semana seguinte, Marcos passou em casa de Sônia, conforme combinara, a fim de levá-la ao Castelinho. Dessa vez, os pais estavam acordados e Sônia os apresentou ao novo amigo: o pai, Sr. Carlos, ex-piloto aposentado pela Aeronáutica por problema cardíaco, careca luzidia, compulsivo leitor de best-sellers; a mãe, dona Sônia, ex-bailarina um pouco gasta pelos anos. Após dez minutos de conversação trivial, sobre o calor (ou foi sobre a chuva?) e o custo de vida, Marcos sugeriu que partissem, senão ficaria tarde. Despediram-se dos pais de Sônia e rumaram para a avenida Atlântica, percorrendo-a até o Posto Seis pela calçada do lado da praia. Marcos, muito animado, contava o que lhe vinha à cabeça: as primeiras impressões do curso pré-vestibular, a dificuldade em se adaptar à rotina, após três meses de férias… Sônia ouvia calada. Ao passarem em frente à galeria Alasca, ponto de encontro de pederastas ativos e passivos, Marcos aproximou a mão direita da mão esquerda de Sônia. A operação de abordagem deu certo. Mãos dadas, desceram a Joaquim Nabuco, com seus prédios suntuosos de portarias de mármore. Atingido o Castelinho, Marcos consultou Sônia se preferia ficar fora ou dentro. “Do lado de dentro, que está ventando.” Nos bancos em torno das maciças távolas de madeira, rapazes robustos, bronzeados e sem camisa papeavam em altos brados, pilhas de bolachas de chope sobre as mesas. Garotas desinibidas, biquínis bem mais sumários do que os de Copacabana, abraçavam aqueles monstros peludos, como se estivessem unidos pelos sagrados liames do matrimônio. “Eu já estaria de pau duro”, pensou Marcos. Sônia observou com muita propriedade que, num país civilizado da Europa, castelo como aquele seria palco de românticos concertos de cravo com flauta doce à luz de archotes, e não de encontros etílico-amorosos pós-praia. Marcos solicitou ao garçom chope com batatas fritas; Sônia preferiu suco de laranja sem gelo nem açúcar. O ambiente ruidoso dificultava a conversa. Marcos queixou-se a Sônia da resistência do pai ao seu plano de estudar Letras. “A pessoa tem de estudar aquilo de que gosta”, anuiu Sônia. “Eu também escolheria Letras, se não fosse estudar música.” Dissertaram sobre livros favoritos: Sônia também curtia os românticos franceses. Menos de uma hora depois de chegarem, Sônia sugeriu a Marcos que solicitasse a conta. Além de o ambiente estar ruidoso demais para o seu gosto, teria de acordar cedíssimo no dia seguinte. Voltaram de mãos dadas, sob a luz das estrelas. Durante todo o percurso, Marcos planejou uma estratégia para tascar um beijo em Sônia na despedida. Na hora, porém, só saiu o “boa noite”. “Boa noite!”

Outro domingo, pede cachimbo, outra praia, outro vôlei, outra feijoada, outra soneca depois do almoço: justa recompensa pela semana de árduos estudos.

No domingo anterior, Marcos não respondera ao recado de Renato. Na segunda-feira, este voltara a telefonar. – Sabe com quem saí ontem à noite? – perguntou Marcos.
– Não – respondeu Renato, curioso.
– Adivinhe…
– Adivinhar como? Não tenho bola de cristal.
– Lembra-se da Sônia, de Teresópolis?
– Aquela múmia que não faz outra coisa a não ser tocar violoncelo?
– Ela mesmo!
– Você ficou doente? Dispensando a turma para sair com aquela chata?
– Ela não é tão chata como você está imaginando.

Novamente domingo, e Renato sem programa. Liga para Daniel: não está em casa. Tenta Afonso (apesar de não ir muito com a cara dele): saiu. Marcos está comprometido com Sônia. O pessoal do vôlei da praia já tem os seus compromissos: um vai sair com a noiva, o outro é casado… Só ele, o “babaca”, queda-se em casa sem fazer absolutamente nada. Se alisasse os cabelos, será que se tornaria mais atraente? Que paradoxo, numa cidade com milhões de habitantes, com tantos bares, cinemas, boates, teatros, não ter absolutamente o que fazer. A professora de química inorgânica, seios expostos como no sonho da semana anterior, não lhe sai da cabeça. A súbitas, toma decisão drástica: vai “afogar o ganso” no puteiro. Conta o dinheiro: dá! Lá se vai o impagável Renato, mestre em humorismo pela universidade de Coimbra, “pois, pois”, contar suas anedotas à piranha Rosinha no rendez-vous da Barata Ribeiro. Número e apartamento abstenho-me de divulgar; não quero meus leitores com gonorréia!

No sábado seguinte, Marcos apresentou Sônia ao pai (“Uma amiga minha, que toca violoncelo…”), levando-a à noite ao bar Zepelim, reduto de boêmios e intelectuais ipanemenses. (“Intelectual não vai à praia, intelectual bebe.”) Desta feita, Sônia acompanhou-o no chope (com pitada de sal, para tirar o amargor). Discorreram sobre o enigmático monólito de 2001: Uma Odisséia no Espaço, filme a que Marcos assistira oito vezes (uma, sob efeito de maconha para curtir o visual). Marcos levantou o braço esquerdo a fim de chamar o garçom (“Ser garçom é padecer no paraíso”, exclamava personagem de cartum do Jaguar, na parede), ao mesmo tempo em que perguntou a Sônia se queria mais um chope. O braço direito de Marcos, estrategicamente pousado sobre o espaldar da cadeira de Sônia, paulatinamente escorregou para baixo, até atingir o seu ombro. Beijo-a ou não a beijo?, cogitou hamletianamente Marcos, mecha dos sedosos cabelos de Sônia entre os dedos. “Mais um chopinho?”, consultou o garçom. Marcos preferiu vodca com gelo (quiçá para ganhar coragem). “Misturar vodca com chope não vai lhe fazer mal?”, indagou Sônia. “Tomei um Engov antes de vir para cá”, mentiu Marcos. A ação diurética do chope não tardou por se fazer sentir. “Um minutinho, que vou à toalete.”

Enquanto esvaziava a bexiga, observou, na parede do mictório, desenhos obscenos de caralhos superdimensionados e bocetas escancaradas, desabafos homossexuais, versinhos chulos com rimas mais ricas do que de muito poeta famoso: “Bater punheta é ilusão, Você sonha que está fudendo (sic), E acorda com a pica na mão.” Lembrou-se das estrondosas cabeças-de-negro que algum incógnito colega estourava em pleno banheiro do ginásio (em certa ocasião, a bomba destruiu a privada). Certo dia, algum engraçadinho escrevera, em letras garrafais, no mictório, a verdade literal: O FUTURO DO BRASIL ESTÁ EM SUAS MÃOS. O diretor do colégio, indignado com a chacota, mandara reunir todas as turmas no pátio e ameaçara que ninguém voltaria para casa enquanto o autor da pichação não se apresentasse. Ameaça baldada: o pichador de banheiro não foi descoberto… Companheiro de mijo postou-se ao lado de Marcos, o qual, discretamente, afastou-se alguns centímetros para evitar salpicos da urina do vizinho. Finda a operação, a cueca de Marcos dirigiu-se, com despeito, ao mictório: “Não adianta reclamar, que o último pingo é meu!” E lá se foi Marcos, aliviado, levar a cabo a manobra amorosa. A rigor, coube à vodca, circulando no sangue, o mérito pelo sucesso (sóbrio não teria sido tão ousado): tão logo voltou a ocupar o assento junto à violoncelista, abraçou-a com vigor e se beijaram cinematograficamente. Daí para a frente, perderam-se em labirinto de conversas amenas, associações de idéias sem lógica formal, beijinhos de língua… Quando deram pela realidade, passava das três da madrugada. “Chi! Papai vai me dar uma bronca!”, exclamou Sônia. Pediram a conta, Marcos pagou (“está na hora de pedir ao papai aumento de mesada”), saíram e pararam um táxi que descia vazio a Visconde de Pirajá à cata de noctívagos…