Estamos numa pousada no Litoral Norte, num lugar afastado do burburinho, entre São Sebastião e Bertioga, gozando merecidamente – ou não, que importa? – as férias de final de ano. Aproveitamos uma semana morta da pré-temporada, antes das festas de Natal e Ano-Novo, antes que tudo aqui seja tomado pela horda de bárbaros turistas sedentos de mar e sol. Quando então haverá filas para tudo, faltará lugar para estacionar o carro, faltará sombra, água, pão, até sol faltará. A praia ficará coalhada de guarda-sóis, legiões de crianças nos ensurdecerão com seus gritos agudos, bolas coloridas rolarão impunes na areia, gordíssimas mulheres usarão irresponsavelmente minúsculas tangas. A quietude da madrugada, que dissipa o tênue rumor do mar, será despedaçada pelo ranger dos pneus furiosos no asfalto. O sossego definitivamente se acabará e a fresca vida de paz e mar será impossível. Será hora de voltar correndo para casa. Antevejo isso enquanto olho o mar se esfarelando nas pedras, e contemplo um barco a vela cruzando lento o canal; o horizonte desaparece na confusão entre o azul do céu e o azul do mar, e uma gaivota vestindo o seu magro esqueleto traça uma rota desconhecida para muito além da ilha, lá longe…
Enquanto isso, gasto o tempo da melhor forma que sei fazê-lo, ou seja: pescando. Passo horas sentado na pedra a observar a ponta imóvel da vara que empunho. É verdade que não tão imóvel assim, pois a brisa que vem do mar faz com que ela vibre com suavidade. Não é a oscilação brusca e inesperada produzida pelo mordiscar de um peixe. A beliscada, quando ocorre – e agora acontece – é como um choque: a ponta se verga abruptamente e volta ao normal para ser novamente encurvada, já então com certa violência, como se a primeira vez não passasse de uma tentativa; é hora da fisgada. Chasqueio firme, sinto que o peixe está lá, e recolho a linha lentamente, comprazendo-me com a briga fraca e inútil do peixe. Deve ser pequeno, a julgar pelo peso, não mais que um palmo, se tanto; fosse uma garoupeta ou uma maria-da-toca, já estaria no buraco e, então, adeus anzol, chumbada, encastramento; tudo perdido, que não há como se arrancar uma dessas da loca, por menor que seja. Ela entra de frente, embute-se na pedra, eriça as barbatanas e se engastalha de uma tal maneira, que nem com um alicate se tira o bicha de lá. Morre, mas não sai.
Levanto o peixe; e como eu previa é uma ínfima perna-de-moça, nem vale a pena matá-la. Cresça e apareça. Devolvo-a numa onda que acaba de se estraçalhar quase aos meus pés.; ela mal bate na água e mergulha para o fundo escuro, esvaecendo-se; ganhou um camarão, mas levou um bom susto. Tanto peixe na imensidão deste mar…, e nenhum que se preste a vir para a minha bela isca. Até agora só a branca perna-de-moça e uma intemente maria-luísa, ambas liberadas devido à sua menoridade, abaixo da crítica. E eu que havia garantido a Zé Pequeno, o cozinheiro, que levaria um peixe para que ele o fritasse para o meu jantar. Ele me disse, animado: vê se traz então uma aratobaia! Só depois vim a saber que se tratava de um pampo. Zé Pequeno é baiano e, por conseguinte, os peixes dele têm outros nomes, embora sejam os mesmos peixes daqui.
Tantos nomes que me confundo, peixe de mar tem nomes vários, a maioria de origem indígena, mas sempre com um outro apelido popular, dado pelos caiçaras locais. Por força desse hábito praiano, em cada lugar os peixes mudam de nome. A variação vai longe, muitos com insuspeitados nomes de mulher: roncador ou coró, ou maria-luísa, ou mademoiselle (!); badejo ou piraúna, ou gracapé; linguado ou rodovalho; galo ou aracorana, ou doutor; parati ou piracuara; garoupa ou piracuca; betara ou perna-de-moça, ou siririca; paru ou frade, ou beija-moça; maria-mole ou chica-velha, ou goetão (nada a ver com Goethe, é, sim, uma variação de Gorete); xaréu ou guaracema; carapicu ou escrivão; robalo ou camorim; prejereba ou dorminhoco; corcoroca ou boca-de-velha; corvina ou sofia (a de água doce, a do mar é guatucupá ou tacu-papirema ou ticupá-pirema!); olho-de-boi ou pitangola; pampo ou sernambiquara, ou aratobaia; e vai por aí afora…nessa desordem sem fim de nomes.
Minha pescaria, apesar de pacienciosa e esforçada, revelou-se infrutífera. Volto ainda com boa parte dos camarões que Zé Pequeno me arranjou. Desde que cheguei, há uns três dias, Zé Pequeno tem me arrumado infalível as iscas, retirando na moita os camarões da cozinha, e evita assim que eu dê uma pernada até a vila de pescadores para comprá-los. Claro que o quebra-galho vai me custar uma boa gorjeta, mas nem por isso deixa de ser uma gentileza.
Além das pescarias, do sol e da preguiça da tarde, o maior esforço que faço é balançar o gelo no copo de uísque. Depois do jantar há o papo descomprometido, conversa jogada fora com Zé Pequeno, que é um baixinho bem falante e me conta suas histórias, coisas da sua vida. Aponta a arrumadeira e diz: minha prima; o rapaz que cuida da piscina: meu irmão; o outro que o ajuda na cozinha: também meu irmão, é o caçula; o jardineiro: meu tio. Ou seja: na pousada todo mundo é parente de Zé Pequeno, e ele explica o porquê. São todos da mesma cidade, nos confins da Bahia, onde não há nem sombra de emprego. E famílias inteiras vêm, numa espécie de diáspora, todos os anos para cá, e espalham-se ao longo da costa norte, com trabalho já tratado nos hotéis e pousadas. Trabalham durante toda a temporada, e voltam para casa só no final dela, lá por fins de março, começo de abril. Durante esse período só ficam na cidade, lá na Bahia, os velhos e as crianças. Mulheres maduras, moças, homens e rapazes desertados em busca da sobrevivência. E ficam durante nove, dez meses longe de casa. A cidade entra num coma profundo, praticamente morre.
Quando retornam com os bolsos recheados, é um acontecimento. A cidade emerge da sua letargia, e são recebidos com festas; considerados os novos-ricos da cidade, os que partiram corajosamente em busca de novos meios de vida, e voltam vencedores. E ficam por lá um tempo gozando a vida, até ser ocasião de tornar para cá. O que ganham aqui em um mês de trabalho, não ganhariam lá num ano inteiro, isso se houvesse onde trabalhar. E lá o dinheiro vale mais, tal a sua raridade. Possibilita que adquiram coisas que jamais sonhariam ter em outras circunstâncias, além de lhes conferir respeito e prestígio. Para os proprietários dos hotéis daqui isso é uma mão na roda, pois os baianos são trabalhadores dedicados, honestos, cordiais e responsáveis; e dispensam registro, previdência e demais custos decorrentes do vínculo empregatício. Zé Pequeno me conta que vários dos seus filhos só veio a conhecê-los meses depois de nascidos, pois calhava de nascerem quando ele ainda estava por aqui, na batalha. Para ele e seus parentes, o litoral de São Paulo é como uma América, para onde eles vêm visando ganhar algum dinheiro enquanto têm disposição e saúde. No entanto, sentem-se meio clandestinos, temerosos dos preconceitos, essa a razão de tentar sempre ficar ajuntados em família. Em cada hotel uma família baiana de serviçais predomina.
Zé Pequeno me diz que o seu objetivo principal é juntar uma boa quantia, que lhe permita ficar de vez na longínqua terrinha curtindo a vida mansa, enricado, sentado na pracinha coscorinhando o dedão do pé… Mas ainda falta muito, confessa meio desanimado… Ademais que se acostumou à boa vida “de rico”, qual seja: vestir-se com decência, comer carne uma vez por semana, dar presentes aos seus incontáveis afilhados, tomar vez ou outra umas “celvejas”, passear de mão dada com a patroa nas folgas… E isso exige muito capital, diz ele.
Bocejo. A conversa anda boa, mas bate o sono, vou dormir. Deixo o exilado Zé Pequeno com seus problemas e seus sonhos. Sonhos tão pequenos quanto ele, mas, no seu simples modo de ver, quase inatingíveis. Penso de raspão nas disparidades, as tantas que temos nestes muitos brasis, afora a variação dos nomes dos peixes…
Mas amanhã tem mais pescaria. Ou tentativa, já que o mar não anda lá muito pra peixe…