… digo que minha vida nunca teve muita importância. Nasci por acaso, num lugar qualquer, num rabo de serra, no tempo em que não havia anticoncepcionais e que filhos eram apenas consequências, às vezes indesejáveis. Como hoje mesmo. Nunca questionei se fui ou não esperado, querido ou desejado. E fui, em criança, amado medianamente, o tanto necessário para não me sentir rejeitado. Se bem que naqueles tempos não houvesse essa história de traumas, psicologia infantil e demais frescuras. Por conseguinte, mamei no peito até certa idade, andei dentro do prazo de hábito, falei com falta de letras um pouco adiantado. Cresci como crescia qualquer um, mesmo os animais, as árvores, os rabanetes, os brotos de capim dos alagados perenes, os filhotes de qualquer passarinho. Tive uma infância sem muitos problemas, afora a raridade constante da comida, decorrência normal do pouco dinheiro que meu pai conseguia ganhar. Inda me considerava um felizardo: tinha pai, muitos nem isso tinham.
Brincava com carros de boi inventados de sabugos, chuchus e palitos, rodava pião, empinava papagaio, igual a todos os outros meninos. Tive pernas magras e tortas, os cortes no dedo, a testa rachada em tombos memoráveis, estrepes no pé, unha revirada de topadas, todas as doenças de praxe: sarampo, tosse comprida, catapora, bucho virado, caxumba, entre outras menos notadas. Mas as benzedeiras muito competentes sempre deram conta das minhas mazelas. Tive sorte de me nascerem bons dentes, ainda que pouco tivesse para mastigar – talvez por isso tão bons, por falta de uso!
Aprendi a ler antes de ir à escola, teimosia do meu pai que insistia em me ensinar por achar que eu fosse inteligente fora da conta. Pai é pai, é bom que se esclareça. Claro que, por aprender com quem pouco sabia, aprendi muita coisa errada: “método”, por exemplo, foi muito difícil depois aceitar essa palavra esdrúxula, para mim era “metodo”, tônica na penúltima, que me soava bem mais forte e conveniente: “metodo!”
Na adolescência fiz o que se espera de todos os moleques, as safadices normais da idade com as filhas do Juvenal; vi a Lili pelada no seu banho de bacia, da janela do seu quarto, que a bandida deixava aberta propositalmente – não fazia a menor questão, achava que todos éramos uns bobos. E tinha razão, embora ela fosse, por um bom tempo, motivo de ferrenhos campeonatos de masturbação.
Matei muita aula importante, como aquela em que a professora ensinava a complicada conta da divisão. Fui com a turma nadar pelado no cacimbão, um antigo reservatório de água abandonado. Enorme, fundo, água escura e pesada, um paredão circular de tijolos lisos de musgo que dava medo, onde mais de um se afogou. Era questão de princípio saltar da beirada, sete metros de altura, e permanecer o mais que pudesse no fundo, voltar à tona só quando o ar acabasse de tudo, no limite. E escalar o paredão pela corda que levávamos sempre que íamos para lá desafiar a nós mesmos. Ainda me lembro do Neco, que sumiu numa dessas. Pulou, e esperamos… Neco era dos que mais tempo ficavam lá embaixo. As borbulhas de ar cessaram, e ele não voltou mais. Veio a Polícia, seguida dos bombeiros, mãe descabelada, irmãos choramingando, e nós assustados, olhando de longe. Não foi achado, apesar dos mergulhos dos bombeiros treinados. Boiou depois de dias, inchado feito um balão, a língua pra fora, o olho esbugalhado e sem brilho pulando das órbitas. Faltavam-lhe uns pedaços de orelha.
Depois inda tirei um bruto zero na sabatina, como num castigo. Mas me recuperei nas outras seguintes. O que não me esqueci foi da cara azul e intumescida do Neco, e da sua orelha incompleta, com a qual sonhei noites seguidas.
Mas, logo veio um tempo em que fomos cada um para um tipo de trabalho, ganhar o bendito pão de cada dia, e as estripulias foram diminuindo. Escola noturna, trampo de dia, pêlos crescendo nas partes do corpo. Folga muito pouca para anarquias.
Mas isso já é outra história.
Só adianto que, àquela altura, Lili velha de guerra já não achava que fôssemos tão bobos, e prudentemente fechava a janela quando ia tomar seu banho diário de bacia.