A sala de reuniões da Igreja da Consolata estava cheia. Muitos casais assistiam atentos a diversos palestrantes, que se revezavam desde às 20:30 horas de uma segunda-feira de outubro de 1998. Eram ensinamentos para serem absorvidos pelos pais, cujos filhos iriam participar do movimento de jovens “Segue-me” naquele final de semana – sexta-feira à noite, sábado e domingo. As palestras eram plenas de argumentações sobre o valor da família nestes tempos difíceis de violência e drogas, a atenção que se deve dar aos filhos no dia-a-dia, o diálogo com eles, que muitas vezes é substituído pela telinha da televisão. Enfim, o apoio que os pais deveriam dar aos seus filhos durante os três dias de orações, palestras e atividades diversas do “Segue-me”, assim como o importante apoio depois do cursinho, para que as sementes plantadas naqueles coraçõezinhos germinassem com todo vigor e não caíssem em solo estéril e se perdessem ou fossem comidos pelos quero-queros do cerrado.
Após as palestras, beirando quinze para as dez da noite, foi servido biscoito com café e chocolate, marca registrada de todos os movimentos da Consolata. Era a hora de bater papo com amigos, colocar a conversa em dia, …
– Escuta – perguntou-me alguém -, você por acaso tem um Lógus vinho?
– Sim – respondi.
– Pois está sem a porta e sem o capô.
Saí correndo da sala de reuniões, as pernas turbinadas, para ver o que teria acontecido, o coração disparando, a mente fervilhando. Com cara de pateta vi o carro sem a porta do lado do motorista, cacos de vidro em cima do assento, sem o capô também. Até os faróis e a grade dianteira foram levados. E como pateta fiquei um bom tempo andando para lá e para cá, tentando entender como isso poderia ter ocorrido, logo em frente de uma igreja.
– Se a gente estivesse tomando cerveja num botequim talvez não tivesse ocorrido nada – falei para minha mulher que chorava seu carro depenado, sentada no meio-fio.
– Deixa de ser cretino, não fala bobagem, que Deus castiga – respondeu ela com censura.
A adrenalina estava a mil, mas pude ver os cabos elétricos cortados e foi fácil recompor o ocorrido. Os ladrões quebraram o vidro da porta do motorista, destravaram e abriram o capô, e rapidamente cortaram os cabos da bateria e do alarme. Com o capô levantado, quem passasse por perto iria supor que mecânicos tentavam desenguiçar o carro, e assim os donos do alheio ficaram à vontade para completar o trabalho.
A cabeça foi ficando cada vez mais quente, mil pensamentos se atropelavam, alguém me lembrou de ligar para a seguradora, no orelhão da Igreja fiz o contato, a Disbrave foi escolhida para receber o carro por ser perto de nossa residência e prometeram que um guincho viria em meia hora.
– Mas o carro tem seguro, não tem? – inquiriu Padre Orestes, chegando para prestar solidariedade.
– Tem, padre – respondi um tanto decepcionado, pois o vigia da Igreja nada tinha visto, como acontece nestes tempos de violência em que todos se tornam Helen Keller, cegos, surdos e mudos, para preservar a própria existência, que pende por um fio de aranha.
A cabeça começou a doer, os pensamentos se atropelavam ainda mais em minha mente, a cidade estava se tornando violenta demais, Brasília começava a ficar insuportável – por que fui votar nesse Christóvam? – daqui há pouco vão nos barrar na rua e roubar nossos olhos, nossos rins, nosso fígado, nossa pele, nossas pernas, nossos braços, nossa língua, nossas orelhas e tudo o mais que ainda tiver alguma utilidade, onde estamos afinal, que nem em frente à casa de Deus não se tem mais respeito, será que os caras seguiram a gente quando saímos de casa ou viram casualmente o carro procurado na frente da Igreja, porque estava claro que era uma encomenda, o Lógus está fora de linha há um certo tempo, e não podia ser só uma pessoa, era um grupo, com certeza em uma caminhonete ou kombi para levar as peças afanadas, coisa de profissional, cabeça fria até demais, pois os gatunos poderiam ser surpreendidos a qualquer tempo, cabeça feita de marginal com longa experiência no crime, é muito sangue frio fazer isso nas barbas de Jesus em frente à Igreja, com muitos carros entrando e saindo, afinal não eram quatro da madrugada, nem dez da noite ainda eram, por que não encostei o carro mais próximo da porta da Igreja, que que foi que aconteceu, meu Deus?
Mas, se Maomé não vai à montanha, a montanha vai até Maomé. Se a polícia não vai até o carro para fazer a devida perícia e a necessária ocorrência, o carro vai guinchado até à DP para os devidos registros. A “via crucis” daquela noite de cão estava apenas começando e eu não podia adivinhar o que ainda vinha pela frente. Da 913 Norte fomos até a 2ª DP, na ponta da Asa Norte, e de lá para o Instituto de Criminalística, no Setor Policial Sul, na ponta da outra Asa do Plano Piloto. No caminho, o motorista do guincho pisava fundo para ganhar tempo, passava dos 80, eu pedia para diminuir – cuidado com os “pardais”! – mas logo voltava a correr muito, minha mulher e meu filho ficaram para trás no Kadett, o motorista diminuía um pouco, meu filho encostava, corria de novo e meu filho ficava para trás na escuridão.
– E aí, véi, o que foi que aconteceu? – perguntou o sujeito na Criminalística, com alguma entonação irônica, provavelmente gozando da minha cara, jurou que nunca tinha visto coisa igual. Após muito talquinho e muitas pinceladas para tentar obter alguma impressão digital, o carro foi liberado para ser rebocado à Disbrave. Uma coisa útil os caras da Criminalística descobriram, vamos ser justos: os gatunos não conseguiram levar a outra porta porque a cabeça do parafuso “espanou”.
Na volta – ufa!, finalmente tudo resolvido, quase uma da manhã, enfim podemos cair na cama -, próximo à Torre de Televisão, o diabo do destino ou o destino-diabo, não sei, como gato preto dos contos supersticiosos, cruzou nosso caminho. De dentro da cabine do caminhão-reboque, ouvi um barulho forte atrás, ao mesmo tempo em que o reboque estremecia, voltei a cabeça rapidamente e vi o inacreditável: o Lógus, por alguns instantes, equilibrava-se em duas rodas apenas, um espetáculo de malabarista de circo que o demo nos reservou àquela hora, em plena madrugada, para que arregalássemos bem nossos olhos, tontos de sono e cansaço, para que pensássemos bastante sobre nossa mísera condição humana, muitas vezes cheia de orgulho e prepotência. Parado o carro-guincho, fomos buscar a roda do estepe que havia se desprendido debaixo da carroceria do caminhão, com certeza devia ter feito um estrago danado na suspensão do Lógus, e foi de encontro ao Kadett de meu filho como uma assombração. Definitivamente, ainda não era hora de dormir.
Deixado o Lógus na concessionária da Volkswagen, na 503 Norte, ligamos para a seguradora para saber como ficava esse segundo incidente, o da roda atropelando o Lógus.
– Será utilizada nova franquia, porque foi outro acidente – respondeu secamente o atendente.
Assim sendo, o jeito era registrar este segundo acidente, para amparo legal em alguma ação que tivéssemos que promover contra a firma responsável pelo reboque. E lá fomos terminar a macabra maratona daquela noite inesquecível de cão, registrando uma segunda ocorrência na 2ª DP.
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Era época do começo da chuvas em Brasília e por isso no dia seguinte providenciamos um plástico para cobrir o carro depenado, já que a rica Disbrave havia jogado aquela lata velha sem importância num terreno da 303 Norte, sem se importar se as futuras chuvas fossem apodrecer as cadeiras e o assoalho do carro. Adiantou falar com a seguradora? Neste país em que não se observam os mais elementares direitos do cidadão, por que iria alguém se interessar por um carro velho diabético, que havia perdido parte do corpo?
O dono do guincho apareceu também na concessionária para ver o inusitado fato ocorrido com o Lógus e para combinar comigo o reparo da roda, alinhamento das rodas e o conserto da suspensão, pois havia uma barra torta. Foi muito atencioso comigo, me ofereceu um carro de sua companhia até que o Lógus se refizesse do canibalismo sofrido. Não aceitei a gentil oferta, seria mais uma preocupação.
No segundo dia em que fui “visitar” nosso pobre carro, vi que tinha aparecido um irmão gêmeo do nosso Lógus no pátio da Disbrave para lhe fazer companhia. Haviam surrupiado duas portas suas, coitado do Lógus, da mesma cor vinho do Lógus da minha mulher.
Como faltavam peças para recuperar nosso carro, este só foi entregue dois meses e meio depois. A porta, me garantiram isso, veio de Belém. Quase tiveram que enviar pedido à Alemanha.
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Com o Lógus enfim em casa, liguei para o dono da empresa de guinchos, combinando levar para Taguatinga na manhã seguinte. Esperei a manhã toda, já estava de férias, fiz o almoço, a mulher estava trabalhando na escola, e nada. Liguei para saber o que havia ocorrido e descobri que o diabo do destino havia aprontado mais uma. O reboque que iria apanhar o Lógus havia levado uma trombada por trás e o motorista estava resolvendo o caso, correndo atrás dos devidos registros de ocorrência. O próximo guincho disponível iria apanhar nosso carro.
– Ainda bem que o guincho não estava rebocando nenhum Lógus vinho! – foi a única coisa que consegui dizer.
Porém, como estávamos para viajar a Santa Catarina para a festa das bodas de ouro de meus pais, preferi adiar o conserto restante do Lógus para quando voltássemos. Viajamos no Kadett de meu filho. Coitado do Kadett: não foi depenado no percurso, mas sofreu mais que escravo nessas estradas esburacadas de Goiás e Minas, cujas crateras não são conhecidas pelo Ministro dos Transportes nem pelo Presidente, porque só viajam de avião.
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Ah! me esqueci de um detalhe. Quando apanhamos o carro na concessionária, ficou faltando uma gradezinha que cobre o alto-falante da porta do motorista. Não haviam encontrado em nenhum lugar do Brasil. Paguei o valor devido da franquia, três prestações de 300 reais, assinei os papéis para o recebimento do carro, com a condição de que me arranjassem a grade no futuro. Palavra do japonês que me atendeu durante todo o processo de recuperação do veículo. Até hoje tenho que ouvir a reclamação de minha mulher quando vê aquele buraco na porta.
Alguém aí da “Feira do Rolo” tem uma grade para alto-falante de Lógus? Pago até 50 reais…