Só é Nosso o Que Não Nos Pertence

Venho aflita e apressada pra almoçar em casa, a Dutra lotada de carros, as pessoas apressadas, carrancudas, com medo do viver. E meu olhar é surpreendido – mais uma vez, Pai? – pelos ipês rosa que explodem flores, os galhos pelados, sem folhas, a árvore generosa como se tivesse guardado todas as forças para florescer.
Assim também somos nós nos tributos que oferecemos à vida, penso meio friorenta, com vontade de parar o carro ali, bem embaixo da árvore e ficar olhando o tempo. Olhando o tempo? Olhando o tempo dos ipês…
Pois é tempo de ipês, vida, e no ar seco e meio frio da manhã rodopiam folhas e flores, papéis. Fico olhando tudo, espectadora de mil olhos, a vida doendo doida dentro de mim outra vez, esta urgência e este medo, esta árvore me mostrando que o tempo passa. Às vezes me traz os ipês, às vezes me traz um susto sem nome, abafado dentro do peito, esta vida tão rápida, estes anos velozes, esta libélula no ar, tão frágil você, bicho, tão frágeis nós, homens.
Debruço-me sobre um livro enquanto espero o almoço e leio palavras tantas. Mas meus olhos queriam era ver o ipê, fico pensando na grande árvore que se inclina para a rua como quem oferece um abraço, um carinho ou grita o seu “estou aqui outra vez”sem ser escutada.
Leio, meus olhos que precisam de quatro graus pra ler de perto… antes, lia sem grau nenhum, ipês. Penso que tudo flui e está como eu gosto: os ipês, o livro, o almoço com a família depois de meio ano comendo sanduíches, almoçando fora, longe da mesa doméstica, longe…
Tudo está como sempre foi. Pode não ser perfeito, mas está. Posso esconder dentro da bolsa o lenço com o qual costumo enxugar os olhos, posso ter pela metade o que desejo e quero, mas aprendi, com os ipês, que nada é para sempre, que tudo muda num instante, que quando pensamos ter uma coisa é que ela se revela não nossa de verdade. E aprendi mais e mais: só temos o que não nos pertence, só assim podemos ter de verdade e para sempre.
Tempo de ipês: que bom, meu Pai, eu poder ver isso assim de novo.
Que bom poder estar, ainda, no mundo e tocar e falar e rir e cantar. Que bom é ser dona de uma alegria secreta, que me brota sempre como esses ipês, explode em mim, me faz dizer coisas às vezes desconexas, mas verdadeiras. Que bom me dar a conhecer como esse ipê na rua e que bom eu saber que existem olhos pra ver o ipê que às vezes sou: abrigado, quieto, de fala mansa.
Ipê rosa, irmão de milhares de árvores, sementes, pássaros e frutos, é pra você que eu escrevo. Para a alegria que me dá, por me deixar ser sua dona ainda que por instantes, quando o meu olhar passeia assim por você e sabe, descobre: nos damos a quem escolhemos nesta vida: pessoas e bichos, a alma das plantas, a alegria do mundo. Por uns instantes, também sou sua, no tempo do olhar suave, na alegria de saber que ainda existem, livres, livres, além dos ipês no mundo, os pássaros que voam, tontos, seus quase vôos sem asas.
Melhores vôos esses, assim como esta flor de ipê, rodopiando livre no ar do mês de julho, livre assim, vista apenas por quem tem olhos de ver.