Plantou uma árvore na manhã de sábado. Não plantava árvores desde os tempos da escola. Lembrava bem: todo dia vinte e um de setembro era o mesmo ritual de cavar um buraco e depositar nele a mudinha. As pequenas mãos ficavam sujas, o macacão jeans – a alça vivia caindo – chegava em casa num estado desesperador. Nessa época usava tranças e calçava menos que trinta. Tempos que não voltam. Árvores que crescem. Gente que se torna árvore. E ela fazia cursos para se tornar a grande macieira da floresta encantada.
Não desobedeceria a mãe para não se tornar a árvore feia. Nela só cabia a águia, a grande águia-rainha. Corujas renegaria. Eram horríveis e indesejadas e ela acreditava no “diga-me com quem andas”. Não ela, talvez. Mas todos, todos acreditam. E ela era escrava de Platão. Nem por isso conformada. Um dia ousaria um pouco, não muito. Apenas o suficiente para ser tocada pelo olhar de Medusa. Estátua no universo. Até que chegaria o lenhador e seria levada aos pedaços para o ourives. Passaria por milhares de pescoços e orelhas e mãos e dedos.
Preciosa jóia. Subdividida. Fragmentada. Longe da grande macieira que um dia sonhou ser. E os pedacinhos chorariam fino numa noite estrelada do fim da primavera. Tarde demais para voltar a si. Tudo porque havia ousado. Tudo porque o cansaço das sombras a havia levado à luz. Tudo porque a lei é a lei. E se a lei dizia “não olhe para a luz”, que a luz não fosse vista. Mas os tempos mudam. Os tempos mudam e a lógica não existe.
Lógica é falácia. É sofisma. Gente se torna árvore dia após dia. E depois tem um filho. E depois escreve um livro e está pronta para morrer. Pois o filho dela talvez fosse o livro. Ou o livro o próprio filho. Em todo o caso, a árvore estava plantada. Uma não, muitas. Algumas formadas, outras formandas e uma, apenas uma, recém-nascida. Não se via de barriga projetada, redonda. Mas queria o filho. Se tudo acontecesse num estalar de dedos estava bem. Só não suportava aquela enorme barriga redonda de umbigo saltado. E sangue. Desmaiava à vista da mínima gotícula. E pensar que um dia havia pensado em fazer Medicina… Não. Não seria mãe. Mas sempre mudava de idéia quando o filho que não existia e que já tinha até nome – Arthur – abria os olhos de um azul profundo no mar de sonhos em que ela se banhava. Arthur. Muito mais fácil era escrever o livro! Arthur teria cólicas e choraria à noite. E ela não daria de mamar pelas madrugadas. Sentia asco pelo leite descendo pelas roupas, manchando o vestido de seda. Não. Arthur seria só o livro. Assim também era bom.
Aliás, era até melhor. Se ela não completasse os grandes mandamentos humanos – plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro – não morreria no físico. Sim, não morreria porque ainda faltava um legado. E o filho não viria porque ela só acreditava numa única vida e não queria jogar fora a imortalidade. A vida física. A cruel, vingativa e interessante vida física! Quem plantava uma árvore, tinha um filho e escrevia um livro ia embora para algum lugar ou para lugar nenhum e só deixava a árvore, o filho e o livro. E não podia usufruir de mais nada, enterrado num buraco, sete palmos abaixo da superfície. Ela preferia não ser lembrada, mas lembrar-se a si própria. A menina de tranças que um dia foi vestia macacão de alças caídas, calçava menos que trinta e ensinava à mulher de agora que o mundo é uma enorme bola girando ao redor do próprio eixo. Mas de repente ela-mulher mandava a menina embora com um safanão: “mesmo o mundo gira em torno de outro mundo!”.
Precisava de alguém chamado Hélio. Usava rabo de cavalo e estava apaixonada por um homem casado. Era mesmo a moça da porta do colégio vista por Sant’Anna há tanto tempo. Mas não estava mais no aquário. Tempos idos. Agora nadava por entre peixes e tubarões e estava apaixonada por um homem casado!
Desobedeceu a mãe e pagou o preço tornando-se árvore feia habitada por corujas. Voltou os olhos para a luz, cegou e virou carvão, não ouro. Inútil. Abstrata e triste. Árvore feia da floresta encantada. Sem sonhos, sem filhos, sem livros. Parada no tempo. Reversa. Utópica. Abandonada de si mesma. Distante dos olhos da terra.
Longe dos olhos do céu. No purgatório.