Quando eu era rapazinho, conheci um poeta que se declarava ateu a Deus e ao mundo. Além de fazer belos versos, ele também escrevia ótimos artigos no respeitado jornal de sua propriedade. Na nossa terra, minha e dele, todos temiam o vigor e a irreverência de sua incorruptível pena. Seus artigos eram quase sempre devastadores. Vez em quando, ele surpreendia seus leitores com uma página de irretocável romantismo: era a vez do vate…
Os padres viviam sob a mira de sua incansável Remington, que, certa feita, chamei de escopeta. Para a Arquidiocese, ele era um comunista perigoso. O bispo, segundo me disseram, chegou a pedir sua excomunhão. Não soube se o Vaticano atendeu a episcopal súplica. Sei, entretanto, que a punição da Igreja jamais o levaria a pedir perdão; e muito menos a uma irreversível conversão.
Recém-saido do seminário franciscano, eu via naquele poeta e jornalista corajoso um legítimo representante do Cão na Terra. Mas sua inteligência e seu desassombro me encantavam. Discordava de suas posições anticlericais, mas nunca deixava de ler seus artigos, crônicas e poemas. Lia-os, mesmo sabendo, antecipadamente, que o alvo seria o papa, um modesto cura, ou um colorido bispo diocesano. Consegui publicar algumas incipientes crônicas no jornal do poeta ateu. Até hoje as conservo nos meus arquivos, volvidos mais de três décadas. Quando as releio, tenho vontade de destrui-las: são muito ruins… E ainda faço esta indagação: será que o jornalista ateu sabia que um ex-seminarista frequentava as páginas de sua rebelde gazeta? Posso, porém, assegurar, que não seria vetado. Apesasr de intransigente na defesa de suas teses,e de seus (pre) conceitos, ele não era intolerante nem mesquinho.
Alguém que o conhecia na intimidade me contou esta história: uma doença Y o fazia sentir dores inenarráveis. No apogeu do sofrimento, ele chamava insistentemente por Deus, mas em francês: “Mon Dieu! Mon Dieu!”. Não sei se no final da vida ele fez as pazes com o Céu. Se o fez, é oportuno lembrar que ele não foi o primeiro intelectual a se converter na hora da partida…
A morte do poeta João Cabral de Melo Neto me trouxe de volta a figura do poeta ateu que conheci na minha terra, e sobre o qual acabo de lhe falar, meu amado leitor. O Mestre de “Morte e Vida Severina”, como o meu conterrâneo, passou a vida se dizendo ateu. Confessava, sem acanhamento e com dignidade, não acreditar em Deus. Cantava a Vida com rara inspiração, mesmo sem crer Naquele que o fazia viver…Castigado durante anos por uma irritante enxaqueca, enfrentou a dor sem aderir a Deus! Ignoro, se no auge do sofrimento , ele fez promessas. Em francês? Por que não? Ele era diplomata de carreira.
Li nos jornais e revistas detalhes sobre a morte do belo poeta maurício. As reportagens, todas, revelaram que João Cabral morreu rezando! Antes do último suspiro, recitou “a Oração que o Senhor nos ensinou”, o Pai-Nosso. Morreu com o Terço na mão… Teria sido a sua única prece? Só Deus sabe. Mas valeu a reconciliação.
Requiescat in pace, poeta….