Um assobio alegre, vindo por trás do meu banco, quebrou a concentração na leitura do meu jornal. Eu não espero outra coisa quando estou aqui no centro. Quero mesmo sentir minha concentração quebrada. A música começou suave, parecendo muito longe e foi se aproximando vagarosamente. Virei-me e lá estava ele, atento ao seu trabalho. Vestido inteiramente de vermelho. Boné vermelho. Ostentava a logomarca da empresa de limpeza pública e assobiava entusiasmado,
enquanto reunia em seu carrinho verde a sujeira que ainda incultos, espalhamos pelas cidades. Olhando sempre para o chão, investigava os arredores, utilizando seus instrumentos com habilidade. Devia ter uns cinqüenta e tantos anos e era
visivelmente feliz.
Vassoura, pá de lixo, e um espeto com cabo longo para fisgar um tipo especial de lixo que teima em fugir ao menor sopro da brisa. Esse espeto é higiênico, evita que o gari coloque a mão na sujeira nossa de cada dia.
Retornei para meu jornal, já acostumado com o fundo musical. O assobio parou repentinamente e instintivamente voltei a me virar para saber o que acontecera. Era um jogo que começara entre um provável bilhete amarrotado, talvez de papel de seda e o espeto do músico desta manhã. Ele apontava o espeto e num movimento rápido tentava fisgá-lo. A brisa acumpliciada, virava o bilhete que fugia do ataque. O assobiador tentava novamente. Sua concentração era tão grande que precisou parar de assobiar. Estávamos os dois nessa luta. Ele no esforço minucioso de caçar o bilhete, e eu numa doida contorcida, que não passava de simples torcida, para de alguma forma auxiliá-lo.
Meu pescoço já doía por me manter tanto tempo virado, quando ele resolveu abaixar-se e cercar o bilhete com uma de suas mãos, agarrando-o com a outra. Era um bilhete cor-de-rosa. Ele cometeu a indiscrição, ou talvez se sentiu no direito, de desvendar o que continha aquele lixo que tanto teimava em não cumprir seu destino. Ficou alguns minutos lendo, depois simplesmente olhando. Sua fisionomia foi se tornando séria. Seus olhos perderam um pouco aquele brilho assobiador, trocando-o por um brilho lacrimoso. Enfiou o bilhete num dos bolsos de seu macacão e voltou ao trabalho, mais lento, sem assobios.
Claro que me deu uma vontade mal criada de ir até lá e perguntar o que continha aquele bilhete que tanto o afetara. A curiosidade humana é a virtude que impulsionou nossa civilização desde a idade da pedra. Não fosse ela, nem o tacape teria sido criado. Dobrei meu jornal e fui atrás dele.
Bom dia! Desculpe a intromissão, mas estava ali no meu banco quando vi o seu exercício para caçar aquele bilhete cor-de-rosa e não pude evitar de ver sua reação quando o leu… Parecia má notícia!
Não quis fazer uma pergunta direta, apenas sugeri que ele me contasse, se quisesse.
Sabe o que é, doutor? É que esse foi o último bilhete dessa história… Eu já reuni na minha casa nove desses bilhetes. Cinco azuis e quatro cor-de-rosa. Com esse serão cinco cor-de-rosa. Tudo numa seqüência…
Mas você parece que ficou triste quando leu…
É que nesse bilhete ela se recusou a fugir com ele. Despediu-se. Vai de mudança com a família para o estrangeiro… Fico triste quando vejo um sonho frustrado assim, bestamente.
Interessante! O senhor tem outras coleções?
Agora nem tantas! Tinha uma época que aqui debaixo dessas mesas, na frente das lanchonetes, eu encontrava muitos… O senhor nem imagina as histórias que eu acompanhei…
Todas assim, tristes?
Não senhor! Tem muita história alegre, feliz… Aprendi muito!
Aprendeu?
É! Aprendi a ser feliz com o que eu tenho. Aprendi a sonhar de novo, apesar da minha idade. Ensinei isso pros meus filhos. Ensinei que eles devem começar a vida pelos sonhos. Sem sonhos não acontece nada de verdade. Mas tem uma coisa: o sonho tem que ser criado pela gente mesmo. Sonhar o sonho dos outros, dos pais, dos avós, dos estranhos, é desgraça certa! Tem que ser o sonho da gente mesmo! A gente bota o sonho na frente do nariz todo o dia e vai perseguindo, perseguindo, perseguindo…
Voltei pro meu banco, meio assustado com a sabedoria exposta assim, gostosamente ingênua, atrás daquele uniforme vermelho. Fiquei lá, olhando as pessoas caminharem pelas calçadas derramando, desperdiçando infantilmente seu tempo sem botar seus sonhos no nariz para perseguir, perseguir…
Tentei voltar para o meu jornal quando no meio do burburinho da manhã que se ajeitava dentro do dia, ouvi novamente, meio longe o alegre assobio do gari.